Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto)
Sérgio Porto, por ele mesmo, "Auto-retrato do artista quando não tão
jovem"
"ATIVIDADE PROFISSIONAL:
Jornalista, radialista, televisista (o termo ainda não existe, mas a atividade dizem que
sim), teatrólogo ora em recesso, humorista, publicista e bancário.
OUTRAS ATIVIDADES: Marido,
pescador, colecionador de discos (só samba do bom e jazz tocado por negro, além de
clássicos), ex-atleta, hoje cardíaco. Mania de limpar coisas tais como livros,
discos, objetos de metal e cachimbos.
PRINCIPAIS MOTIVAÇÕES: Mulher.
QUALIDADES PARADOXAIS: Boêmio
que adora ficar em casa, irreverente que revê o que escreve, humorista a sério.
PONTOS VULNERÁVEIS: Completa
incapacidade para se deixar arrebatar por política. Jamais teve opinião formada
sobre qualquer figurão da vida pública, quer nacional, quer estrangeira.
ÓDIOS INCONFESSOS: Puxa-saco,
militar metido a machão, burro metido a sabido e, principalmente, racista.
PANACÉIAS CASEIRAS: Quando dói
do umbigo para baixo: Elixir Paregórico. Do umbigo para cima: aspirina.
SUPERTIÇÕES
INVENCÍVEIS: Nenhuma, a não ser em véspera de decisão de Copa do
Mundo. Nessas ocasiões comparativamente qualquer pai-de-santo é um simples cético.
TENTAÇÕES IRRESISTÍVEIS: Passear
na chuva, rir em horas impróprias, dizer ao ouvido de mulher besta que ela não tão boa
quanto pensa.
MEDOS ABSURDOS: Qualquer inseto
taludinho (de barata pra cima).
ORGULHO SECRETO: Faz ovo
estrelado como Pelé faz gol. Aliás, é um bom cozinheiro no setor mais difícil da
culinária: o trivial.
Assinado, Sérgio Porto, agosto
de 1963."
Filho de Américo Pereira da Silva Porto
e de D. Dulce Julieta Rangel Porto, Sérgio Marcos Rangel Porto,
um cidadão acima de qualquer desfeita, nasceu no Rio de Janeiro em pleno verão, no dia
11 de janeiro de 1923, e ficou famoso anos depois sob o pseudônimo de Stanislaw
Ponte Preta, emprestado à Oswald de Andrade (vide Memórias de
Serafim Ponte Grande). Foi casado com Dirce Pimentel de Araújo, com quem teve
três filhas: Gisela, Ângela e Solange.
Dizem seus estudiosos que no citado livro
teria encontrado seu grande filão:a irreverência. Começou uma obra carioquíssima, até
hoje insuperável, transpondo para jornais, livros e revistas o saboroso coloquial
do Rio de Janeiro. Afirmam, também, que as melhores crônicas são aquelas onde a
disposição de desfazer o sentido de uma palavra ou de uma situação não se manifesta
apenas no final do enredo, mas parece atingir a estrutura da narrativa; quer dizer, a
partir de pistas falsas, a história é conduzida visando a um final que não acontece,
substituído por outro, totalmente inesperado (vejam Menino Precoce e A
Charneca, por exemplo).
Era um mestre das comparações
enfáticas:
"Mais inchada do que cabeça de
botafoguense"
"Mais assanhado do que bode velho no cercado das cabritas"
"Mais suado do que o marcador de Pelé"
"Mais duro do que nádega de estátua"
"Mais feia do que mudança de pobre"
"Mais murcho do que boca de velha"
Traçou, em 12 palavras, o retrato de uma
época , os tais anos dourados nada permissivos, quando o preconceito prevalecia,
principalmente em matéria de sexo:
"Se peito de moça fosse buzina,
ninguém dormia nos arredores daquela praça". Antes da liberação sexual, as
praças e outros cantinhos escuros eram, então, um buzinaço.
Criador de Tia Zulmira, Rosamundo
e Primo Altamirando, foi com seu Festival de Besteira que Assola
o País - FEBEAPÁ, lançado em plena vigência da Redentora,
apelido do golpe militar de 1964, que ele alcançou seu grande sucesso. Stanislaw
afirmava ser difícil precisar o dia em que as besteiras começaram a assolar o Brasil,
mas disse ter notado um alastramento desse festival depois que uma inspetora de ensino no
interior de São Paulo, portanto uma senhora de nível intelectual mais elevado pouquinha
coisa, ao saber que o filho tirara zero numa prova de matemática, embora sabendo
tratar-se de um debilóide, não vacilou em apontar às autoridades o professor da
criança como perigoso agente comunista.
Outras besteiras colhidas pelo autor:
"No mesmo dia em que o governo resolvia intervir em todos os sindicatos, resolvia
mandar uma delegação à 16a. Sessão do Conselho de Administração da OIT, em
Genebra. Ao Brasil caberia exatamente fazer parte da Comissão de Liberdade
Sindical. Na mesma ocasião, um time da Alemanha Oriental vinha disputar alguns jogos aqui
e então o Itamarati distribuiu uma nota avisando que eles só jogariam se a partida não
tivesse cunho político. Em Mariana, MG, um delegado de polícia proibia casais de se
sentarem juntos na única praça namorável da cidade, baixando portaria dizendo que moça
só podia ir ao cinema com atestado dos pais. Em Belo Horizonte, um outro delegado
distribuía espiões pelas arquibancadas dos estádios. Dali em diante quem dissesse
mais de três palavrões ia preso."
Na mesma época (1954) em que o
jornalista Jacinto de Thormes publicou na revista Manchete a lista das
"Mulheres Mais Bem Vestidas do Ano", Stanislaw, que escrevia na
mesma revista sobre teatro-rebolado, não quis ficar por baixo e inventou a lista das
"Mulheres Mais Bem Despidas do Ano". Com a grita das mães das vedetes,
passou a usar uma expressão ouvida de seu pai — "Olha só que moça mais
certa" — e estavam, assim, criadas as "certinhas" do Lalau. De 1954 a 1968
foram 142 as selecionadas. Dentre outras, podemos citar Aizita Nascimento, Betty Faria,
Brigitte Blair, Carmen Verônica, Eloina, Íris Bruzzi, Mara Rúbia, Miriam Pérsia, Norma
Bengell, Rose Rondelli, Sônia Mamede e Virgínia Lane.
Ao contrário do que parecia ser -- um
cara folgado, brincalhão, gozador e pouco chegado ao labor, Sérgio Porto,
por suas inúmeras atribuições, era um lutador. Nos últimos anos de vida tinha uma
jornada nunca inferior a 15 horas de trabalho por dia."Só estou levantando o
olho da máquina de escrever pra botar colírio. Hoje fui gravar na
televisão e antes foi aquela batalha contra as teclas. Estou trabalhando demais, outra
vez. Só para esta semana: seis Stanislaws, um Fatos & Fotos, um final apoteótico
para o novo programa do Chico Anísio, roteiro e script para aquela bosta chamada
Espetáculos Tonelux, depois quadros humorísticos para a TV Rio, Miss Campeonato, Da Boca
pra Fora, o programa de rádio Atrações A-9, além da revisão do livro O Homem ao Lado
que será reeditado no próximo mês e da gravação do programa Qual é o assunto?" Para
alguém que teve seu primeiro infarto ao 36 anos, era demais.
"Tunica, eu tô apagando".
Essas foram as últimas palavras ditas pelo autor ao sofrer seu derradeiro infarto, no
dia 29 de setembro de 1968.
Paulo Mendes Campos, o excelente e tão esquecido cronista mineiro, traça
um perfil do autor em um texto cheio de humor e de dor pelo falecimento de Stanislaw Ponte
Preta (in "O Anjo Bêbado", Editora do Autor Rio de Janeiro, 1969, pág.
7).
SÉRGIO E STANISLAW PONTE PRETA
O diabo o é que todo mundo pensa que sou um cínico; ninguém acredita que sou
um sentimentalão que não agüenta uma gata pelo rabo.
Sérgio me dizia isso a milhares de metros de altitude, copo de uísque na mão,
rumo a Buenos Aires. Ao saber que eu tinha resolvido assistir ao jogo Brasil e Uruguai, no
Campeonato Pan-Americano de 1959, veio procurar-me com uma ansiedade incomum: precisava
afastar-se do Rio de qualquer jeito, me disse, tinha decisivos assuntos íntimos sobre os
quais queria pensar.
Sendo assim, por que ir a Buenos Aires? Não fiz a pergunta por entendê-lo:
Sérgio possuía o talento de viver em diversas faixas ao mesmo tempo; Buenos Aires lhe
calhava numa instância de decisões pessoais porque o recolhimento do hotel se somava aos
benefícios do torneio de futebol, da companhia dos amigos, das anedotas jornalísticas e
até mesmo dos restaurantes portenhos.
Já dentro do avião, nessa ou em qualquer outra viagem, desligado de suas duras
obrigações, transformava-se: mesmo roído por dentro, a gratuidade do instante era boa
demais para não ser aproveitada. Sempre que uma aeromoça lhe perguntava se queria um
sanduíche ou um refrigerante, respondia alegremente com uma frase que ouviu de
Billy
Blanco: "Quero tudo a que eu tenha direito." E era verdade.
Na chegada a Buenos Aires, houve uma dessas súbitas situações cômicas criadas
por aquele homem carregado de conflitos: avião estacionado, entrou nele um médico da
saúde pública, um homem ruivo e bastante calvo. Pedindo aos passageiros que exibissem o
atestado de vacina, o médico estendeu a mão para Sérgio, ao mesmo tempo que dizia em
tom cavo e impessoal: "Vacunación, señor." Como se estivesse recebendo um
cumprimento de boas-vindas, Stanislaw (aí era ele), muito grave, apertou a mão do
médico, falando claro e efusivo: "Vacunación para usted también?" O médico,
rubro de indignação, expulsou-nos do avião, sem mais exigir o documento sanitário e,
enquanto eu explodia de rir, ele sussurrava-me entre os dentes: "Agüenta a mão, se
não a gente acaba em cana."
O dom mais
surpreendente de Sérgio era esse trânsito livre entre as manifestações da vida. Ainda
no dia de nossa chegada a Buenos Aires, eu o veria em atitudes múltiplas: durante o jogo
dramático entre o Brasil e o Uruguai (o três a um da briga), ele deu um empurrão nos
peitos dum argentino que insultava os brasileiros, chorou quando Paulo Valentim fez o
terceiro gol, riu-se às gargalhadas quando o Garrincha passou indiferente entre uruguaios
e entrou no ônibus com um sanduíche enorme na boca e outro na mão; e ainda conversou
longamente comigo sobre suas aflições, depois de cear com entusiasmo.
Quando acordei, ele já
andava pelo saguão, depois de ler os jornais todos, à cata de histórias do Mendonça
Falcão - a máquina já destampada no quarto.
Fiquei seu amigo há mais de vinte anos, quando ele escrevia crônicas de música popular para a revista Sombra. Bonito, forte,
elegante, inteligente, alegre, simpático - era um privilegiado sem ostentação. Só lhe
faltava o dinheiro, como de resto ao grupo todo: mesmo mal pagos, tínhamos de aceitar as
ofertas que a imprensa nos fazia como um favor, bicando aqui e ali, sofrendo na carne os
atrasos do caixa, brigando pelo dinheirinho de cada dia. Mas o clima não era de miséria
nem de tristeza: bebíamos crepuscularmente nosso uísque escocês no Pardellas da Rua
México, dançávamos no Vogue, andávamos de táxi. Já que o dinheiro era pouco, o jeito
era gastá-lo no essencial: o apartamento
próprio que esperasse.
Eustáquio Duarte, Lúcio Rangel, Luís Jardim, Cássio Fonseca, Jarbas Duarte
eram diariamente pontuais no Pardellas; Zé Lins do Rego, Rosário Fusco, Santa Rosa,
Jaime Adour da Câmara, Flávio de Aquino, Simeão
Leal, Luis Santa Cruz e outros apareciam com freqüência. O jazz negro era o nosso
alimento: Sérgio e seu tio Lúcio Rangel ensinaram ao resto da turma o que era puro nesse
setor e o que se contaminara.
Por um momento,
numa fase financeira mais dura, quase o acompanhei num gesto até certo ponto desesperado:
o de escrever programas de rádio. Para ele foi o início duma vida de sucesso
profissional e cruel desgaste físico. Na imprensa, no rádio e na televisão do Brasil a
ascensão se confunde com
a queda. Sucesso nesse terreno não é poder
trabalhar menos e ganhar o suficiente: é trabalhar sempre mais. Vitorioso no Brasil é o
jornalista que sempre encontra mercado de trabalho; e não preços mais altos. Só chega
ao chamado certo nível de vida somando diversas atividades corrosivas.
O humorista começou a surgir no semanário Comício, excelente escola de
descontração do estilo jornalístico, dirigido por Rubem Braga, e Joel Silveira, onde
escreviam ainda Clarice Lispector, Millôr Fernandes, Fernando Sabino, Otto Lara Resende,
Rafael Correia de Oliveira, Carlos Castelo Branco, Edmar Morel, onde também apareceram as
primeiras crônicas de Antônio Maria e as primeiras reportagens de Pedro Gomes.
Digo o humorista profissional, porque o da convivência com os amigos vinha do
tempo das peladas em Copacabana: Sandro Moreira, João Saldanha, Mauricinho Porto, George
Rangel, Máriozinho de Oliveira, Carlos Peixoto e Carlinhos Niemeyer são alguns que se
lembram das histórias engraçadas de Sérgio, o Bolão.
Sua vivacidade era tão instantânea que sempre a aceitei com naturalidade.
Espantava-me, isto sim, seu discernimento, agudo, preciso, a respeito de tudo: uma
canção, um cantor, um vestido, um quadro, uma atmosfera, uma situação complicada.
Dizia em cima a palavra exata, a observação certa, o julgamento justo.
O contraditório é que
pudesse fazer humorismo uma pessoa que possuía tanto senso das proporções e da verdade
escondida. Seu humorismo, bem reparado, não era o usual, pelo contrário, ele fazia humor
sem caricaturar o assunto. Bernard Shaw, quando queria fazer graça, dizia a verdade. Ele
também fez graça falando verdades, descobrindo verdades, tendo a coragem de ser odiado
por dizê-las.
Como todo homem de sensibilidade, precisava de amigos e afeto; mas desprezava os
mesquinhos, os medíocres, os debilóides, os cretinos.
Seu gosto era certo. Amava os livros e os discos, milhares de discos, discos que
ouvia às vezes enquanto trabalhava, atendendo ao telefone a todo instante, recebendo
amigos, contando piadas, e continuando a batucar na máquina, insistindo para que o
visitante ficasse, sob a afirmação (verdadeira) de que estava acostumado a escrever no
meio da maior confusão.
Eu, que apesar de tarimbado, já começo a ficar afobado no fim deste mal
enramado artigo, com a redação querendo saber se já pode mandar buscá-lo, lembro a
tranqüilidade de Sérgio no meio do caos, e não entendo o segredo que o dotou ao mesmo
tempo de extraordinária capacidade de trabalho e da calma que deve ser a dos monges
tibetanos.
De que morreu Sérgio Porto? Do coração e do trabalho.
No fim do ano passado, nas vésperas de Natal, estivemos juntos em Brasília: ele
se lamentou o tempo todo no dia da volta, dizendo que ficaria ali, na ociosidade do hotel,
por um tempo indeterminado. Foi difícil arrancá-lo da cama ao anoitecer. Este ano
viajamos novamente juntos para São Paulo e Belo Horizonte. Foi a mesma coisa. Queria
descansar, transfigurando-se no repouso, encarando com horror as atividades que o
esperavam no Rio.
Na nossa última noite em Belo Horizonte, ele, Fernando, Rubem, Gérson Sabino e
eu jantamos num restaurante muito bonito, que tinha de tudo, menos comida mineira. Sérgio
reclamou tristemente durante todo o jantar. Queria arroz, feijão, couve, lingüiça.
Não sei por que essa lembrança me comove e serve para fechar esta página que
eu não queria triste. Que a tristeza fique conosco, os amigos que o amavam.
Bibliografia:
Como Stanislaw Ponte Preta:
- Tia Zulmira e Eu - Editora do Autor, 1961
- Primo Altamirando e Elas - Editora do Autor, 1962
- Rosamundo e os Outros - Editora do Autor, 1963
- Garoto Linha Dura - Editora do Autor, 1964
- FEBEAPÁ1 (Primeiro Festival de Besteira Que Assola o País), Editora do Autor, 1966
- FEBEAPÁ2 (Segundo Festival de Besteira Que Assola o Pais), Editora Sabiá, 1967
- Na Terra do Crioulo Doido - FEBEAPÁ3 - A Máquina de Fazer Doido - Editora Sabiá, 1968
Com o nome de Sérgio Porto:
- A Casa Demolida - Editora do Autor/1963
(Reedição ampliada e revista de O Homem ao Lado - Livraria. José Olympio
Editores)
- As Cariocas - Editora Civilização Brasileira, 1967
Sobre o autor:
- Dupla Exposição: Stanislaw Sérgio
Ponte Porto Preta, Renato Sérgio, Ediouro, Rio de Janeiro, 1998.
- De Copacabana à Boca do Mato: o Rio de Janeiro de Sérgio Porto e
Stanislaw Ponte Preta, Cláudia Mesquita.
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