Giovana
Tiago Rafael Alves
Mendes
O bicho estava no morre não morre. Esticava as patas em espasmos e se aquietava.
Marcelo estava verde-abacate, da cor da camisa Polo. A mão espalmada entrevia os
olhos esbugalhados, que espiavam a cena hirtos de horror. Saiu correndo para dentro da
casa deixando Giovana sozinha com o canino.
"Molenga", disse num suspiro. E resumiu assim sua mais sincera convicção sobre
o namorado. Um molenga. E Marcelo sempre fora assim. Tinha pavor de baratas e insetos em
geral, e desmaiava ao menor indício esmaecido de sangue. Nunca ousara utilizar um
banheiro que não o seu, e só tomava leite tipo B de saquinho. "É mais
fresco", dizia.
E os desígnios do destino haviam-no atado à veterinária que crescera no interior,
fascinada por todos os animaizinhos viscosos que o aterrorizavam. E apesar de
acostumada aos caprichos do namorado, como retirar cirurgicamente as sementes de um kiwi,
sentiu-se indignada por tê-la deixado ali sozinha, com um cachorro que nem era seu.
E nesse exato momento, num último gemido abafado, o Labrador de quinze anos bateu as
botas, sem o padre e a extrema unção prometidos pelo dono. Giovana se ergueu e caminhou
em direção à casa, mas parou. Refletiu por um instante e julgou melhor enterrar o bicho
no terreno baldio da esquina antes de dar a notícia ao Marcelo. Assim sendo, pôs-se a
procurar o carrinho de mão no fundo do quintal. Buscou também a pá no galpão escuro.
Ensacou o cachorro enorme, colocou-o com dificuldade sobre o carrinho e saiu pelo portão
do lado, praguejando bem baixinho.
Eram trinta longos e escuros metros até o lote abandonado. E foi nesse instante que a
viatura subiu a rua, cegando-a com os faróis. O Sargento abriu a porta e saiu
desconfiado. O Cabo, que bebericava num copo de café, arrepiou-se ao ver a mulher com a
pá no meio da noite. Saiu do carro e amoitou-se atrás do Sargento.
"O que que há no saco, minha senhora?"
Giovana, escondendo seus olhos da luz intensa, respondeu:
"O cachorro do meu namorado."
O Cabo Paçoca cuspiu o café na nuca do Sargento, que buscou desesperadamente o revólver
que parecia colado ao coldre.
"Mãos na cabeça!" Disse, tremendo como uma vara verde.
Giovana, percebendo a desventura lingüística que cometera, tentou inutilmente explanar a
situação.
"O senhor não entendeu. O cachorro do meu namorado está dentro do saco. Eu vou
enterrá-lo.
O Sargento ficou branco como um pudim, e todo o seu bigode se eriçou.
"Sua assassina! Paçoca, pegue as algemas. E eu aconselho a senhora a se
render."
As pupilas de Giovana, agora mais acostumadas ao clarão, puderam focalizar a imagem
rechonchuda do sargento.
"Me render? Mas nem arma eu tenho!·
"Ai, valha-me meu São Jorge", berrou o Cabo Paçoca atrás da porta benzendo-se
compulsivamente."Ela disse arma! É uma psicopata armada!
·
O Sargento correu pra dentro do carro e pôs os olhinhos miúdos atrás da mira do 38.
"Pede ajuda, Cabo! Um pelotão!
E a Giovana, confusa, tentando se retratar.
"O senhor não entendeu. Eu só estava esperando o cachorro morrer, e agora vou
enterrá-lo.
E o Sargento suava bicas d'água.
"E é sádica! ·
O Cabo Paçoca já previa os pedaços do pobre namorado dentro do saco, e suas mãos
gelavam ao espiar o rosto da cruel assassina. E pensar que até o mês passado era guarda
de trânsito!
"Não atire, minha senhora. É melhor se entregar.
O Sargento ergueu o nariz acima da porta se esforçando por esboçar um sorriso
diplomático. Até deu um passo na direção na direção da moça.
"Mas eu não fiz nada. Só estou fazendo isso porque o meu namorado não iria
agüentar essa bomba!."
O Sargento pulou pra dentro da viatura. O Cabo Paçoca desmaiou.
"Ela disse bomba! É terrorista! Chama o esquadrão anti-bombas, os fuzileiros!"
Dona Leopoldina desabou no sofá. Seu Plínio trouxe o suco e a pipoca. Tirou as pantufas,
enfiou-se debaixo do cobertor e ligou a televisão. Quase teve um troço ao ver, não O
Parque dos Dinossauros, mas a filha, cercada de repórteres e viaturas. A imagem
aérea não deixava mentir. Era a casa de Giovana. E escondido dentro do armário, estava
Marcelo se benzendo; medo de bala perdida. Perdida, contudo, estava Giovana, no campo
minado das ambigüidades. Quanto mais falava, mais piorava a situação. Os transeuntes se
aglomeravam, e alguns flanelinhas já cobravam pelo estacionamento. Então, desapercebido
de qualquer senso de hermenêutica, o Cabo Paçoca levou a veterinária para o distrito. E
assim foram três horas e trinta pontos de ibope.
Giovana vive hoje em Presidente Wenceslau, cuidando das cabeças de gado do pai. De vez em
quando é reconhecida na rua. Já deu dois ou três autógrafos. Foi sua melhor decisão:
voltar para casa. E terminar com Marcelo.
E-Mail: tiagorafael@uol.com.br
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