A partida
Renata Soares
Continuou sentada, pernas cruzadas sobre a cama, braços cruzados sobre as pernas, nas
costas o gelo da parede anestesiava um pouco a dor. Perplexa, não houve nenhuma reação
possível após o anúncio da partida. Partida, inerte, frustrada lembrou-se da efêmera
safra de amoras, quanto prazer, quanta cor, quanto sabor. Não que houvesse um grande
motivo para que ele ficasse, mas sem prenúncio, ou justificativa, ou mágoa, ou medo, ou
motivo, (antes que o dia amanhecesse) ele decidiu ir embora. Ela ficou. Antes de sair ele
lhe beijou a testa, completou o leite no pires do gatinho, ele era assim... e agora ia
embora. Ainda sobre a cama ela se sentiu cansada, muito cansada, desejou uma árvore
carregada de amoras maduras e nada, nada mais. Ouviu a porta se fechar, imaginou se ele
olharia para traz, lembrou-se dos olhos, do cheiro, do prazer.
O dia amanheceu, a parede tornou-se aconchegante, os olhos do bichinho tão querido
outrora não significavam mais nada agora. O mundo foi-se tornando distante, vazio,
imenso, uma semana depois o gato também se foi, não agüentou a inundação de solidão
que jorrava dela. Ele ainda tentou, antes de ir miou, aproximou-se, brincou. Ela
continuava imóvel, como uma deusa esquecida, em posição de Lótus sobre a cama, olhos
vazios.
Os amigos a encontraram no quarto depois de semanas de telefonemas inúteis. Inútil
também todas as tentativas de tirá-la daquele estranho torpor, coma, transe ou sabe-se
lá o quê. Decidiram então levá-la dali. Não foi fácil transportá-la naquela
posição que não se desfazia, tentaram algumas vezes, mas diante da dificuldade cederam
e levaram-na como um boneco, uma estranha manequim sofrida. Sua melhor amiga lhe deu a
melhor cama, fez a melhor comida, tocou a melhor música, fez o melhor que pôde, até
não poder mais.
Em alguns meses aquela presença acabou tornando-se um estorvo, com uma pontinha de culpa
colocou a amiga empalhada no jardim, sob algumas árvores. A princípio sentiu um leve mal
estar, mas logo entendeu que aquele era mesmo o melhor lugar para sua petrificada amiga. O
jardim dinâmico como era, logo absorveu aquela novidade. Ela não ficava tão estranha
entre o vento, o orvalho, as larvas, os pássaros e o sol. Passou o tempo, passaram as
estações, caíram folhas, as noites gelaram, as flores voltaram e finalmente chegaram as
amoras e a cor. Foi num dia de primavera que aconteceu o inesperado, de repente acendeu um
brilho nos olhos, era quase imperceptível, mas estava lá. Ela quase já era um vegetal,
lodo já esverdeava a pele, os cabelos abrigavam diferentes insetos, as amoras manchavam
todo o corpo,os olhos entretanto, agora brilhavam. As árvores estalavam e espalhavam
sementes pelo chão, o sol começava a se despedir, o calor diminuía, quando nas costas
dela surgiu algo novo, a pele de todo corpo foi-se partindo, quebrando. E sem muita demora
ou explicação soltaram-se asas enormes de suas costas, arrancando a capa envelhecida em
que a vida se tornara. Libertou-se e como uma estranha fênix renascida das cinzas subiu
ao céu, num vôo que mais parecia um mergulho na tarde dourada. E quando a noite chegou,
trouxe consigo uma saborosa felicidade e cheiro de amoras.
E-Mail: renata@altanet.com.br
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