Pequenos prazeres
Ricardo Morales
Saiu arrastando os pés até o banheiro, levantou a tampa da privada, fez pontaria e
mandou embora a cerveja. Lavou as mãos, umedeceu os cabelos, passou o pente de leve,
escovou os dentes e achou que seu rosto continuava o mesmo; as rugas, a barba cultivada no
final de semana e a pele ruim. Sentia uma indisposição mal definida, uma espécie de
inquietação.
Ao entrar na cozinha encontrou a esposa com uma expressão preocupada, preparando o café
da manhã.
Aproximou-se e deu-lhe um daqueles beijos rápidos e protocolares trocados por casais de
longos anos.
Hoje eu vou querer um pingado, amor. Só um pouquinho de leite.
Todos os dias tu diz isso, Morales.
Ah, é?
Pão ou bolachas recheadas?
Bolachas. Só duas, preciso emagrecer. Tô me sentindo enorme.
Escuta, Morales. O que foi que houve ontem?
Como assim? Lá no Luís?
Ele tá furioso contigo.
Que negócio é esse?
Eu queria ouvir a tua versão.
Morales descolou os lados da bolacha deixando à mostra o recheio de baunilha colado em
uma das extremidades. Gostava de raspar os dentes ali. Para ele era um modesto deleite
pelo preço de noventa e nove centavos o pacote.
Sobre o quê, afinal?
É que a Flavinha disse umas coisas...
Eles tinham acabado de vender o carro. A prestação do apartamento já ia bem atrasada; o
banco ameaçava leiloar o imóvel e Morales sabia que a situação não melhoraria dali
para frente. Não se cansava de dizer para Marisa que gente como eles apenas tinha o
direito de desfrutar de pequenos prazeres, de breves momentos que custam quase nada, como
a farinha das bolachas dissolvendo-se na língua . Dizia que não resultava em nada o
esforço e a preocupação do casal, as circunstâncias estavam postas e naquela altura da
vida, sem grandes perspectivas de alteração . O carro já não existia, precisava
procurar por emprego pulando de ônibus em ônibus, de qualquer modo, falava estar
resignado, pois lhe restavam, ao menos, os pacotes de bolachas.
A Flavinha, é?
Ela tem só onze anos, Morales.
Ele traçou outra bolachinha e foi preparando a seguinte para ser devorada, descartando o
projeto de regime alimentar, enquanto lembrava dos longos cabelos anelados de Flavinha, do
cândido aroma juvenil de sua pele, das bochechas rosadas, das pernas finas e dos olhos,
desde sempre, perscrutadores e provocativos.
O que foi dessa vez, ora?
A mulher sentou-se e levou alguns instantes para encará-lo. Ele sabia que mais uma vez
não tinha acordado no horário e a segunda-feira estaria perdida e, talvez, a semana
toda.
Olha, querida. Eu vou ver se consigo alguma coisa hoje à tarde. Dou uma passada
lá no Silvino. Sempre aparece alguém precisando uma pintura, um conserto em algum cano.
No final do dia, é certo, trago uns trocados.
Entretanto, Marisa contou que havia recebido um telefonema da irmã, logo cedo, e que
Margarete alertara que Luís estava uma fera, que queria ir até a delegacia, mas que a
mãe não havia permitido.
Parece que ligaram pro doutor Santos. Eles querem resolver em família, Morales.
O que é, hein? Não tô entendendo nada.
Eu preciso saber por quê.
Aquela conversa fez a irritação serpentear em sua corrente sangüínea fluindo pelo seu
corpo. Um calor instantâneo apoderou-se de seu rosto, os dentes cerraram avivando a
dorzinha de cabeça matinal e a pálpebra de seu olho direito sofreu pequenos espasmos.
Eu também; tu sabe, quando eu bebo, não lembro.
O homem ergueu a xícara e tomou um gole de café misturado com um pouco de leite. O
líquido marrom-escuro correu quente fazendo arder a sua garganta. Ele tinha certeza de
que ficara parte da noite no lado de fora da casa, conversando com o cunhado e um outro
sujeito que aparecera por lá. Tinha tentado controlar-se no começo, mas rendeu-se e
tomou algumas doses de uísque acompanhadas dos petiscos servidos pela cunhada.
O problema é comigo, Morales?
Ele congelou o olhar na toalha de um branco puído onde beija-flores sem cor alçavam
vôo. Morales queria ser como um deles, bater as asas em fúria para manter-se vivo, ir
para um outro lugar e sorver o suco reservado aos deuses. Porém, suspirou e perguntou o
que tinha acontecido.
Marisa, sem receio, disse que ele tinha tomado quase toda a garrafa de uísque sozinho,
que insistiu em mostrar para o vizinho da irmã que misturar cerveja e outra bebida não
lhe fazia mal. Cada vez que entrava na casa, ia ao banheiro, passava pela cozinha e pegava
um copo de cerveja.
Lá pelas tantas, Morales, tu sumiu e o Luís te achou deitado na grama da frente.
Disso eu não lembro, não.
É porque tu não sabe beber, Morales e, aí, faz merda.
Tá, mas a Flavinha?
Eles não tinham filhos. Tratavam a sobrinha como se fossem os pais da criança. Morales
tinha um amor especial por ela. A menina, desde tenra idade, tida como geniosa, sempre
irascível com os pais e doce com seus padrinhos. Não era por acaso que Marisa pensava
nela como uma espécie de filha-com-açúcar.
Eu sei que as coisas estão difíceis, mas...
Porra, mas o que é agora? Eu jamais faria qualquer coisa para magoar a Flavinha.
Eu adoro aquela menina.
Marisa levantou-se, abriu a torneira e colocou a sua xícara debaixo do jato d'água.
Eles estão vindo para cá.
Parece que todo mundo está contra mim.
Tu sabe o que aconteceu, não é?
Tu tá surda? Já disse que não sei. Era só o que faltava tu achar que sou
mentiroso.
O pacote de biscoitos já estava quase vazio. Morales tinha visto algumas moedas na gaveta
do criado-mudo. Na certa não passavam de míseros cinqüenta centavos e ele teria que
arranjar o resto para comprar mais bolachas recheadas.
É que a Flavinha não mente, Morales.
Sei que não houve nada disso do que estão dizendo.
Eles, daqui a pouco, estão chegando.
O homem examinava o fundo da xícara, remexendo no pacote vazio, sem perceber que nada
mais encontraria ali.
Ela vem?
Quem sabe tu vai comprar umas bolachas, Morales. Deixa que eu converso com a
Margarete.
Morales colocou a primeira roupa que pôde encontrar, despediu-se rapidamente da mulher
enquanto ela lhe dava um dinheiro e fechou a porta de casa atrás de si. Antes que pudesse
se afastar o suficiente, ouviu as xícaras sendo atiradas no chão da cozinha.
E-Mail: ricardomorales2007@gmail.com
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