
Manuel Alexandre Lopes Matos
Pinto Monteiro é português, jornalista, e reside em Lisboa.
Chefe de redação do jornal local Notícias da Portela e revisor de diversas
editoras portuguesas como a Dinalivro, Pergaminho, Pedra da Lua e Ficções Média.
Vencedor do prêmio literário em prosa poética da Revista Epicur, em 2002,
é um dos autores do livro "30 Mulheres Mais", publicado pela editora Edeline.
Foi, também, um dos vencedores do prêmio literário sobre a questão do Racismo,
organizado pelo SOS Racismo em 1999; vencedor de diversos prémios literários em revistas
e blogs, essencialmente de poesia. Colaborador regular do Diário de Notícias
na secção DN Jovem de Lisboa, desde 2001. Publicou o livro de ficção
Demanda ou a cor nunca vista na editora Ficções Média (2008), do qual
extraímos o fragmento ao lado. |
Demanda
Manuel Matos Monteiro
Em qualquer altura, há sempre uma série de coisas na nossa vida que não pode ser
adiada. Continuamente correndo em alguma direcção, nunca nos é possível parar.
Gostaria muito, mas agora não dá. Fica para uma próxima oportunidade...
Não tive qualquer pejo em desfazer (não adiar, desfazer) todas as imperiosas
frivolidades do dia seguinte, deixar o telemóvel em casa e partir.
O secretismo da aventura conferia-lhe um sabor acrescido, como um desejo que não contamos
a ninguém, receosos de que perca alguma força.
Ninguém entendia o meu sorriso e isso dava-me um certo e inexplicável gozo.
Os extremos tocam-se costumamos ouvir dizer. Havia na minha obsessão uma
espécie de libertação. Eu esvaziara por completo a mente. Nada que não tivesse que ver
com Sofia Salgado conseguiria vir à tona.
Conduzia pela manhã limpa e ensolarada, sentindo o vento fresco na face. A música alta
espalhava pelo meu corpo a plenitude de um poder desconhecido. Desfrutava largamente a
liberdade que se me oferecia e deleitava-me com a antecipação dos dias vindouros. A
minha amiga imaginação operava uma miríade de delícias que me esperariam em Areias de
Prata.
Aquilo que eu desejava com a intensidade com que nunca desejara nada... Nem podia
simplesmente imaginar.
Parei num motel para dormir. Deitado na cama, um peso caiu como chumbo sobre a minha
cabeça, enquanto sombras se moviam pelo quarto e os meus braços e pernas se agitavam sob
lençóis suados.
Eh-pá-porra-meu!-eu-vou-apenas-passar-férias-pá-há-tanto-tempo-que-não-tenho-férias-pá!
ribombava uma voz interior, protectora.
Uma camada intermédia do meu cérebro procurava convencer-me de que ia simplesmente ter
as férias que há muito desejava. Areias de Prata era um lugar pejado de belas paisagens
naturais, o ideal para o repouso da alma. E quem sabe não aproveitaria ainda para fazer
uma fotorreportagem vendável. Mas a última camada do meu cérebro que a camada
intermédia tentava a todo o custo subjugar com o meu deliberado apoio sabia que a
minha viagem tinha uma única e exclusiva razão.
Afinal, Sofia Salgado estava ainda bem viva dentro de mim. Julgara-a adormecida, imersa
num coma profundo, mas agora tornava-se evidente que ela latejava na polpa da minha alma,
bastando uma fresta para a fera enjaulada saltar...
Ao abandonar o motel, e mediante a aproximação de Areias de Prata, o nervosismo e a
inquietação iam dando machadadas na antecipação do deleite. Havia qualquer coisa que
me enevoava o espírito, como uma bruma caindo sobre o bosque. E não era o receio de não
a encontrar.
Guardaria Sofia Salgado a centelha intangível que incendiava a minha alma? Teria o
núcleo da sua identidade sobrevivido ao tempo, à pressão e a vulgaridade do mundo
exterior?
Estes ecos de angústia repercutiam-se no fundo do meu ser, qual som de uma trovoada no
mar tumultuoso ressoando pelo barco à noite.
Numa tarde de sol e céu azul, submergi lentamente num mar de mel ao ler numa placa:
A-r-e-i-a-s d-e P-r-a-t-a. Todas as letras pareciam vestidas de uma cintilação e cor
especiais. Encostei o carro antes de transpor a placa.
Tchic! Tchic! Tchic! era um daqueles momentos em que o som de registo da minha
máquina fotográfica me arranhava docemente a alma.
(Mantida a grafia do português de Portugal).
E-mail: manuel_monteiro@ficcoesmedia.pt
Blog: http://www.srjoao.blogspot.com
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