[amaralina]
lara morais
era um quarto miúdo, quente, mal iluminado e escondido junto ao pé da escada fazendo as
vezes de lar, àquela que cuidava tão bem e há tanto tempo do nosso. quando não estava
lavando as roupas ao tanque, cuidando do almoço, passando uma vassoura ou aguando as
plantas, era lá que procurava para entregar-se, por alguns momentos, de corpo e alma, à
tão merecida preguiça. deitada à cama, de remendados mas limpos lençóis coloridos,
punha o pequeno rádio de pilhas vermelho aquele mesmo que ganhara num bingo
beneficente que ajudara a organizar em sua cidade interiorana - a cantar conhecidas
canções enquanto espiava o céu janela afora. duas estantes de madeira pintadas à mão,
apinhadas de livros, revistas e miudezas várias, apertavam-se e brigavam entre si naquele
tão apertado espaço. na parede contrária às estantes, um antigo guarda-roupas, de duas
portas e muitas gavetas, que pertencera à dona da casa, metia medo em qualquer um.
lembrava um caixão de defunto; e, como se não bastasse, em uma de suas portas pregara
uma foto antiga, ainda em preto e branco, de sua já falecida mãe, dona de um daqueles
olhares perdidos, distantes, que não pareciam enxergar o homem de terno e gravata
borboleta que, imagino, deve tê-la fotografado num tempo afastado, quando eu ainda nem
pensava em morar na barriga de minha mãe. embaixo da cama, guardava sua tão querida
máquina de costura e uma redonda e grande caixa verde, cujo interior era habitado pelas
mais diversas coisas: linhas, agulhas, fotografias, recortes de jornal, botões, um trevo
de quatro folhas amassado, um óculos de aro grosso, lentes redondas e forte grau, lenços
brancos com flores bordadas, um cachimbo preto, algumas cartas de antigas amigas e
possíveis já esquecidos mas não confessos amores e uma bonequinha de porcelana, de
perna e nariz quebrados, que ganhara de minha mãe no natal passado. por vezes, dali, me
pudera ver trepada ao galho da mangueira, vestindo meu tão conhecido blusão laranja.
dizia sempre que eu parecia uma imponente princesa indiana, em meu elefante preferido e
que só faltava me pintarem os olhos. na mesinha ao lado de sua cama, num copo d´água,
seus dentes descansavam à noite. ao lado, sua escova de dentes de tantas e longas cerdas
repousava. seu quarto foi, para mim, durante muito anos, um lugar fantástico, cheio de
mistérios e surpresas, que eu gostava de tentar adivinhar sentada ali fora, à escada,
enquanto ela, cheia de cores, ali se transformava.
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