Atrás da Porta
Léa Madureira
Atrás da porta o menino pendurava sonhos. Logo que saía, levava
alguns com ele; acaso os esquecia, deitava imaginações em confiança
ao vento. Vivia histórias de acompanhar passarinhos, riachos, asas
de borboleta. Porém, agora, o tempo era feito de fugas. Passavam-se
horas, e já se evadira.
Um dia a professora perguntou:
— Pedrinho, o que é isto em seu olho? Encolheu-se, perdido na
desproteção, e não respondeu.
E ela, só cuidados.
Chamou-o a um canto...
— Olha, Pedrinho, você está sempre se machucando. Se estiver com
algum problema, nós podemos ajudá-lo. Há pessoas que podem visitar
você, conversar com sua mãe...
Pedrinho deixou de ir à aula. Medo de perder, de vez, o caminho, não
poder acompanhar o pai que já nem fazia mais nada direito...
Serrava lixava empilhava...
— Pai, já fiz minha parte. O senhor já terminou a sua? Foi a asneira
que disse e, pronto! Aquele olho roxo!
—Não se meta na minha vida, seu pirralho estafermo! Vá pra escola,
anda! Ora essa, era só o que faltava, tomar conta do que faço ou não
faço!
Dava pena ver a mãe esvaindo-se no trabalho, enquanto o pai, olhar
perdido, bebia sem querer mais escrutinar os sonhos... Tão bom se
voltas se a ser como antigamente:
— Olha, Pedrinho, vamos envernizar e levar pro patrão. Se ele pagar
a grana toda, vamos ao futebol lá na Vila, amanhã.
Nem tanto pelo futebol! Gostava mesmo era de ver o pai puxando
conversa com ele, rindo, pulando, a cada gol do Peneira, no Bairro
Ferro- viário: viu esse, Pedrinho? O cara é bom mesmo, hein?
Agora, desgosto só. O pai piorou por causa da Letícia e o moço da
praia. Vivia cismando com tudo. Ela adorava o mar! O moço mergulhava
e trazia peixe arpoado. Também surfava e velejava.
— Esse cara não
presta! Um filhinho de papai! Não trabalha, não estuda. Faz nada!
Filha minha não sai com tipo assim. Enquanto eu viver...
Letícia sonhava ser bailarina. A cada volteio, da sala para cozinha,
vinha o tranco: isso só vai te trazer aborrecimento! Vê se aprende a
costurar, bordar, cozinhar... A vida não é nenhum baile não!
Certa vez, Letícia saiu ao vento muito forte de setembro e não
voltou mais. Ninguém viu pra onde. Pedrinho, cada vez mais,
repreendido pelo pai. Talvez porque nunca fechasse a porta ao
circuito do vento pelas janelas...
Todos os dias o pai bebia. Esperando a volta da filha, foi
aumentando a dose. Pedrinho temia que a professora aparecesse em
casa com o Juiz de menores. Carecia dar mais uma chance ao pai...
mostrar os sonhos atrás da porta. Escolhesse alguns e sairiam, outra
vez, pro futebol, pra casa da vó, pra praia — Distraírem-se...
Numa noite, a
tempestade:
— Por que você está rindo? Achou dinheiro na rua, por acaso?
— Pai, mãe viu Letícia na estação com um menino no colo. Deve ser
seu neto!
— Vira essa boca pra lá! Se ela inda tiver vergonha, não vem mais
aqui!
— Vem sim, com seu neto, pedir a sua bênção!
— Olha aqui, garoto, se vocês quiserem vão atrás dela, mas eu não
quero mais ela aqui, ouviu bem?
Pedrinho evadira-se novamente...
— Pai, se o mar fosse pinga, você podia fazer uma prancha e levar um
barril pra encher lá no meio dele, não podia?
— Que besteira é essa, agora, garoto? Quer me provocar? Tá de novo
com doidice?
— Pai, mas você sabe fazer barco, prancha e até jangada, não sabe?
— Garoto, já disse pra não encher o saco! Por que você não vai mais
à escola, não faz mais as lições do colégio?
— Pai, é que a professora quer falar com o senhor. E eu tô dando um
tempo...
Ao alcance da mão, a garrafa zune contra a parede. Pedrinho foge,
deixando algo que se parte atrás da porta. O vento colhe-o pelas
ruas. E o caminho conhecido, leva-o até a praia.
Cada dia mais
doente, o pai já nem levantava a cabeça do travesseiro. Foi a mãe
quem abriu a porta, quando os filhos, o neto e aquele moço
apareceram, de longa distância. O futuro a chegar, e o avô assustado
em seus primeiros passos.
Nos fundos, instalaram a fábrica de barcos e pranchas. O moço
trabalhava a serra com habilidades. O pai restabelecia-se. Com a
serralheria, o cheiro; na porta, a placa:
BARCO E PESCA ORLANDO E CIA.
Pedrinho segue imaginações, alinhavando agora o caminho da praia aos
riachos, nas reservas em q confia. E preciso ainda não esquecer,
todos os dias, de macerar o hálito dos jardins ao gosto dos quintais
a entrar pelas janelas. E pendurar tudo atrás da porta.
No mais, importa sempre fabricar o vento!
E-MAIL:
leamadureira@hotmail.com
|