Dona Nazaré
Luís Indriunas
Assim que viu a menina baldear, dona Nazaré engoliu uma náusea invejosa e amarga que
queria se prender no céu da boca. Bem que ela já vinha desconfiando. A ausência dele
era cada vez mais longa. E a pele da menina, cada vez mais brilhante. Os cabelos, cada vez
mais negros. O sorriso, cada vez mais largo. Mesmo com o marido viajando há duas semanas,
ele não apareceu. Quantas vezes havia deixada aberta a janela de frente à mangueira?
Quase não chove mais em dezembro, quase não venta mais em Belém. Um calor cortava as
noites de Nazaré. A insônia apurou seus ouvidos e ela escutava todos os barulhos da
noite no seu quintal. Fosse gato, fosse rato, fosse gente, fosse ele. Mesmo ouvindo e
sentindo seu delicioso pitiú, Nazaré não iria levantar. O medo de alguma outra verdade
a petrificava. Preferia acreditar que ele, como veio, foi-se por dentro dos sonhos, para
longe do mundo. Mas o seu cheiro forte, inebriante, irreal estava próximo. Do outro lado
do quintal. Ela tinha a certeza de que ele se envolvia em uma carne nova e úmida. Nazaré
fechava os olhos para guardá-lo na memória. Nunca o viu, apenas o sabia. Teve certeza de
que não era ladrão da primeira vez que ouviu seus passos pela escada. Eram lentos e
decididos. Nenhum bandido é tão generoso, tão carinhoso. Tinha as faces deliciosamente
lisas, um corpo maleável, envolvente.
A menina chorava toda vez que enjoava. Nazaré gritava toda vez que a menina chorava. Vou
te devolver pra tua mãe, pra tua mãe. Quantos anos será que essa moleca tem? Estás já
há uns quatro anos aqui, não é menina? Essa nunca tinha botado medo em Nazaré. Nem
bonita era. Nazaré desliza no rosto a mão saudosa de juventude. A idade seca a gente.
Desembeleza. Uma pobreza de caráter atacou a alma de Nazaré. Quanto mais a menina
enjoava, mais rápido ela planejava. Queria olhar com prazer o sofrimento da outra. Era
sua única arma. A única vingança possível. Sabia o que ia acontecer. Mesmo sendo
sempre uma dona-de-casa, Nazaré conhecia muitas coisas. Foi assim que esperou até que a
pele da menina embruxecesse, criando valas de rugas, montanhas de bolhas. Deu óleo de
máquina para a menina. Não adiantou muita coisa. A pele secava e perdia a cor. Quase
não comia a pobrezinha. Quanto mais seu esqueleto aparecia nos braços, nas mãos, nas
pernas, no rosto, mais sua barriga crescia e crescia pontiaguda. Dona Nazaré deixou que a
menina parasse de trabalhar. Nesses casos é melhor o repouso. Já liguei para sua mãe,
menina. Deixei recado. Disse que vem lá pelo oitavo mês, que ela está muito ocupada. A
menina não sabia que mês estava. Setembro, círio, junho, natal. Se pelo menos pudesse
ver os dias passando. Às vezes ouvia as chuvas, muita chuva. Sabia que tinha sol, porque
nessas terras, ele entra, de qualquer jeito, por entre as mangueiras, pelas frestas, por
trás da cortina. Mas o sol lhe dava enjôo. A chuva lhe dava medo. A noite, angústia. A
menina respirava com sentimentos doloridos. Tinha certeza da morte da sua mãe. Tinha
certeza da sua morte. Dona Nazaré era muito boa de não contar nada. Por isso, sua mãe
não vinha. Seus olhos já secos tentavam derrubar lágrimas de solidão e gratidão à
sua patroa. A pobrezinha agradecia ao seu próprio verdugo.
Algumas vezes, os olhos doces de dona Jacirene vieram lhe visitar. Falou alguma coisa de
vingança, insistia. A menina não entendeu direito a história que a velha lhe contou. A
menina, que só gostava de história com flores, não entendeu o que era aquilo.
Mau-olhado. Olho-gordo. Isso a menina já conhecia. Teve muito. Da namorada do filho da
dona Nazaré. Do quarto da filha de dona Nazaré. A menina entendeu o que era, mas não
pegou o recado de dona Jacirene e continuou seu sofrimento.
Soltava golfadas no meio da noite. Seus pêlos caíam pela manhã. Os cabelos, à tarde.
Seus cílios murchavam. A menina começou a sentir falta da dona Nazaré. Só via a comida
entrando por baixo da porta. Só sentia o cheiro do feijão quente. Outro dia, chorou sem
soluço ou lágrimas por não poder chamar ninguém. Nem dona Nazaré, nem Jacirene, nem
mamãe. A mamãe. No dia de uma dessas saudades, a menina começou a respirar de cinco em
cinco minutos. Era um sopro sem força. A barriga a entupia. Num dos últimos cinco
minutos, ela ouviu, bem longe, um alvoroço, uma gritaria, que pensou que fosse até sua
mãe com as irmãs. Depois os cinco minutos ficaram mais longos.
A polícia arrombou a porta. Num supetão, o delegado voltou para trás com nojo, tampando
o nariz. Dona Nazaré chorava sentada embaixo da mangueira. Chovia muito naquele dia e o
porão estava cheio de folhas, garrafas, potes de plástico. Para fazer a autópsia, os
legistas tiveram que lavar o corpo. Havia um rasgo cortando a barriga, cheio de pedaços
de espinhas de peixe.
E-Mail: indriunas@uol.com.br
|