Crepúsculo da véspera
Luiz Gonzaga Godoi Trigo
Nozes, figos secos e vinho do porto: uma combinação nada adequada para o quente Natal
brasileiro, mas estimulantemente saborosa. O avô pensava nessas frivolidades enquanto
sorvia mais um gole de Sandeman e olhava da sacada de seu apartamento as luzes coloridas
dos outros prédios e das ruas já sem tanto movimento. Os raios do sol tinham
desaparecido deixando algumas últimas tonalidades coloridas no céu noturno coalhado de
estrelas. Seria uma linda noite de Natal. Em breve um dos filhos viria buscá-lo para a
ceia, a primeira sem a sua mulher. A avó, sua companheira, havia morrido no início do
ano após um problema cardíaco grave e rápido. De repente, aos 78 anos, a morte deixou
de ser uma idéia para tornar-se um espectro quase palpável, mas que não mais o
angustiava com um peso triste no peito. Ele sabia que, no Natal, a dor da ausência dos
mais queridos se agrava e a saudade se instala inexoravelmente na memória e no coração.
A vida é uma sucessão de conquistas e perdas e, agora, esperando passar a noite de Natal
com alguns de seus filhos e netos, mais uma vez refletia sobre o balanço de sua
existência, exercício que se tornava mais comum à medida em que assistia a dezenas de
vídeos e filmes no cinema para matar seu tempo ocioso ou lia alguns romances indicados
pelo seu neto que estudava Literatura.
Mas o que ocupava a maior parte de suas telas mentais eram as lembranças dos Natais
passados. Naquele tempo, ele era o jovem e bem sucedido pai, cercado dos filhos, dos seus
pais, de alguns irmãos e sobrinhos, dos outros parentes amigos e de sua querida mulher.
Todos em sua casa desfrutavam da festa com Papai Noel, muitos brinquedos e presentes para
todos, árvore enfeitada e uma mesa sempre farta. Lembrou-se de um outro Natal, passado em
Londres, com pouca neve e muito Armagnac, quando a filha mais velha fazia doutorado e
morava em uma das simpáticas casinhas perto da estação Candem Town do metrô. Depois
vieram os Natais maturidade plena com os primeiros netos e finalmente aquele dezembro
terrível, quando o filho mais novo morreu em um brutal acidente automobilístico voltando
com os amigos de São Sebastião.
Lembrava-se também dos Natais distantes de sua infância passada em uma pequena cidade do
interior do Estado, onde os dias e noites demoravam a passar e o cheiro das damas-da-noite
preenchiam com volúpia os crepúsculos do verão. Na verdade, ainda havia algo desse
cheiro na cidade, especialmente nas alamedas arborizadas ou perto dos bosques
remanescentes. O cheiro das castanhas da infância era inesquecível de tão bom, assim
como o cheiro do tender que sua mulher fazia e que, nem nos Estados Unidos, ele encontrou
igual. O odor dos figos secos tornou-se real enquanto ele mastigava um delicioso espécime
retirado de sua jarra de cristal, presente das bodas de ouro. Não havia mais castanhas no
Natal,nem seus pais, nem o filho caçula, nem a esposa, nem o frescor da juventude que ele
exibia em seus músculos até perto dos 60 anos.
Mas havia o tempo presente. Guardara o cartão de aniversário que seu neto lhe mandara
logo depois da morte da avó onde se lia: "Nada no mundo é permanente e somos tolos
em desejar que uma coisa perdure, porém mais tolos ainda seríamos se não a
apreciássemos enquanto a temos. Somerset Maughan". Isso era muito razoável.
Ele tinha vivido intensamente a sua vida, tinha cumprido com seus deveres conjugais,
paternais e profissionais. Esperava, ainda, completar alguns projetos e sonhos. Um deles
viria em breve: o primeiro bisneto. Em meados de dezembro sua neta o havia convidado para
jantar e, durante a sobremesa, enquanto sorviam um vinho do porto parecido com aquele que
agora lhe aveludava o paladar, contou que estava grávida de três meses. O filho seria
para meados do ano, era o processo da vida em andamento. Em sua família os velhos diziam
que sempre que um partia outro chegava, às vezes mais do que um, e a família crescia e
se espalhava pelo mundo.
A notícia do nascimento dera-lhe algum alento no período pré-natalino e, agora, na
noite mais sagrada da cristandade, ele, que nunca foi muito religioso, refletia que uma
criança realmente simbolizava o amor para ser compartilhado, a esperança no futuro e a
fé em algo que transcende a nossa própria vida. Pode ser uma transcendência meramente
genética, bem material mesmo, mas já é alguma coisa. Algo como os livros que um tio
escreveu na década de 1960 e que, de vez em quando, ele pegava na estante para sentir um
pouco de sentido em sua existência, já que os livros eram sobre religiões comparadas e
o autor um sociólogo que morreu na década de 1980, uma das primeiras vítimas da moderna
Hepatite C.
Havia um último gole de vinho na pequena taça. Olhou a bebida contra o horizonte, do
alto de sua sacada no 18° andar e resolveu que brindaria ao futuro. Não apenas ao
bisneto que conheceria em poucos meses, mas aos tataranetos que muito provavelmente não
conheceria.
Se estivesse em um navio, teria jogado a taça vazia ao mar. Sentia-se saudoso, mas
satisfeito, perto da morte, mas disposto a viver cada último dia de sua vida. Sentia
falta dos que foram, mas imaginava que as crianças da família tinham uma longa vida pela
frente. Entrou na sala, acendeu a luz principal, quebrando a penumbra, e o anjo, um belo
enfeite de Natal, reluziu com suas vestes brilhantes e seu semblante refletido nas imensas
bolas vermelhas e douradas que compunham a decoração. A brisa da tarde trouxe frescor à
sala e o avô percebeu, de forma muito sutil, que os milhares de odores e sons de sua
infância, de sua juventude e de sua vida madura se mesclavam no apartamento que foi
deixado conforme a avó sempre cuidava. Estavam presentes o tio em seu livro amarelado, o
filho caçula no quadro da parede perto das samambaias, seus pais em seus genes, seus
amigos na pequena adega, pois várias garrafas eram presentes antigos, e sua esposa,
presente em tudo o que o cercava, inclusive os filhos e netos que em breve veria.
O interfone tocou avisando que o neto o esperava na garagem. Enxugou uma lágrima quase
solitária, deixou a janela um pouco aberta para deixar entrar a brisa e olhou para o
espelho. O velho bonito e com olhos brilhantes devolveu o olhar e outra lágrima, agora de
alegria, despontou no canal. Havia uma festa a viver, uma família esperando-o e muitas
crianças aguardando os presentes e a mágica que a vida lhes reservava. Era o chamado da
vida, exatamente o sentido e o significado do Natal. O elevador chegou e ele embarcou para
o futuro.
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