Alphaville e a cidade desconhecida
Juliana Corrêa
Estava decidido. Louise se mudaria para longe de Alphaville. E de fato h?tempos vinha se
mudando aos poucos. Não podia mais com aquela gente que lhe exigia tanto. Tudo ali
requeria uma geometria exata e tudo o que fazia parecia, aos olhos de todos, algo tão
diferente do esperado. Olhavam-na assim como se a algo raro de tão incompreensível e sua
produção espiralada ou circular eram objetos quase não identificados pelas
convenções. Não podia repetir quaisquer de seus atos, pois nada se adaptava ao formato
local, tendo ela sempre que criar uma nova ação na esperança de se fazer entender.
Sentia-se então quase estrangeira, mas lembrava-se de um lugar tão diferente em sua
infância, e para l?ia sempre que a vida lhe deixava de sorrir.
Começara nos fins de semana. A distante cidade era um recanto com bosques, rouxinóis e
tudo o que torna uma paisagem perfeita, parecendo um dos desenhos que entregara ?
professora do jardim, h?muitos anos. Usando o balanço do parque, seu corpo se
movimentava em sincronia com seus pensamentos e com o movimentar da folhagem. Ali não
precisava explicar nada, talvez pela simplicidade das pessoas, que não lhe exigiam
grandes formalidades. Tudo era aceito e eram raros os tons cinzentos e as formas
retilíneas. A cor da infância finalmente voltara, sobrepondo-se ao cinza em que vivera
at?agora. Via uma qualidade lúdica na paisagem, as flores e árvores animavam-se ?sua
passagem, a cachoeira fria era mesmo agradável e podia compreender tudo o que lhe
cantavam os pássaros.
Desvencilhando-se de tudo, mudava-se para aquela terra sem nome, que sempre conhecera.
Nada ali era adverso e todos lhe sorriam como se nela também reconhecessem algo familiar.
E assim viveu, por muito tempo, ao sabor das ondas de harmonia que emanava o lugar. Mas se
em sua crença tudo seria sempre assim, alguns fragmentos obscuros, que recordava em
vislumbres e sem desejar, insistiam em aparecer. E subitamente um inseto tão estranho e
cinzento invadiu o cenário antes conhecido. As asas eram retorcidas e ela podia quase ver
pequenos olhos encarniçados a lhe espreitar. Em vão procurou se livrar da criatura
desconcertante que a perseguia por toda parte. O antes agradável clima da primavera
trouxe um vento inóspito e numerosas nuvens escuras se reuniram sobre as árvores. Tudo
acontecia tão rápido e ela sentia que perdia tudo. Aquele lugar que parecia lhe
pertencer se esvanecia sob os olhos e novamente ela sentia que Alphaville, a qual j?
havia quase esquecido, ressurgia mais rapidamente do que podia suportar. Toda harmonia que
vivera era deixada pra trás, como se nunca houvesse existido realmente.
A contragosto, Louise estava de volta. Não pôde imaginar que viveria ali novamente,
junto aos seres autômatos que jamais puderam enxergar as verdadeiras formas e cores do
mundo. De nada adiantaria lhes falar de tudo o que vira e sentira, pois estavam condenados
a crer que seu mundo era o verdadeiro, e o dela, uma ilusão que somente os remédios
curam. Quisera ela que inventassem cápsulas de ingresso ?cidade desconhecida, para
ministrar àqueles que jamais teriam uma chance de visit?la. Quanto a ela, bastaria
burlar os enfermeiros, escondendo seus remédios, e retornaria espontaneamente ?cidade
desconhecida.
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