Um drink para a posteridade
Janaína Lauxen
Estava tomando minha oitava cerveja, mas já estava bêbado desde a segunda. Beber com o
estômago vazio faz mal, e eu sei, mas não tenho fome. Tenho sede, e de cerveja. Ainda
mais depois que Ana me trocou por um sujeito que usa sapatos marrom-claros e gel no
topete. Perdi completamente o apetite e o controle.
Larissa falava sem parar sobre como sua mãe era má, e seu namorado era um grosso, e seu
emprego era uma porcaria, e sobre como era incompreendida, sofrida e maltratada.
Foi quando um estrondo lá fora emudeceu todo o bar inclusive o Iggy Pop, que
cantarolava na JukeBox.
Eu estava de costas para a porta, e num primeiro momento acreditei que alguém houvesse
caído um tombo. Todos os dias os bêbados e os adolescentes bebem e lá pelas tantas caem
tombos.
Só que não era um bêbado, nem era um tombo.
Alguma coisa havia despencado de algum apartamento, do prédio onde, no térreo,
funcionava o bar. Só não alcançou o chão porque foi freado pelo telhado de lona, que
cobria a porta de entrada do estabelecimento.
Ninguém estava sentado lá fora por causa da chuva. E demorou alguns segundos até que
alguém resolvesse levantar e ir conferir o que, de fato, estava acontecendo. Mas bastou
um se movimentar, após aquele compelido silêncio, para que todos se acotovelassem até a
porta, desesperadamente curiosos.
Que medo, meu! O que deve ser aquilo? perguntava, aflita, Larissa, enquanto
agarrava-se ao meu braço como se eu logo eu pudesse lhe proteger de alguma
coisa.
Devem ter jogado alguma coisa pela janela. Um sofá, talvez respondi, sem
prestar muita atenção no que estava falando.
Porque alguém atiraria um sofá pela janela?
Nunca se sabe.
Então alguém gritou:
É uma mulher!
Uma mulher?
Levantamos alvoroçados. Por mais que atirar sofás pela janela não seja exatamente
comum, por essa ninguém esperava: uma garota, com cerca de 20 e poucos anos, era retirada
do toldo, agora parcialmente destruído.
Ela está viva?
Acho que sim, o toldo amorteceu a queda.
Abriram passagem, e o garçom já telefonava para a ambulância quando a infeliz recobrou
os sentidos:
O que...?
Todo mundo parou em pé a sua volta, calados, esperando.
Ela olhou para os lados, e finalmente pareceu entender o que havia acontecido:
Com certeza eu não morri e isto aqui não é o céu, certo?
Pode ter certeza que não respondeu alguém.
Merda ela socou o chão sem muita força Tentar se matar e não
conseguir é o auge do fracasso.
Ninguém disse nada porque ninguém sabia o que dizer.
A ambulância estacionou espalhafatosa, e a moça levantou, aparentemente inteira:
Mandem a ambulância de volta falou, desagradada Estou mais viva do
que quando saltei.
O garçom explicou a situação para os médicos que, desconfiados, foram embora.
A garota, cujo nome nunca soube, caminhou até o balcão e pediu um conhaque: Para a
posteridade, disse alto e sarcasticamente, já parecendo embriagada.
Talvez já estivesse.
Aos poucos, as pessoas foram voltando aos seus lugares, e não demorou para a JukeBox
voltar a tocar. Voltei a pensar em Ana e Larissa voltou a resmungar. O garçom voltou a
servir as mesas, e os bêbados voltaram a encher os copos.
Alguns minutos depois, parecia que nada havia acontecido.
Como se nenhuma garota de vinte e poucos anos tivesse tentado se matar, feliz ou
infelizmente sem sucesso.
Como se esta garota não estivesse agora mesmo sentada ali, há poucos metros, furiosa
pelo suicídio frustrado e certamente por todas as frustrações da vida de alguém com
vinte e poucos anos.
Como se ela não estivesse com o copo de conhaque intocado na sua frente, há tempos
observando seu fundo, como se quisesse ali se afogar.
Talvez não estivesse.
Nunca se sabe.
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