Ponto da paixão efêmera
Ilan Pellenberg
Era linda de morrer a mulher parada no ponto do ônibus. Vinícius, debruçado sobre o
parapeito de sua janela no sétimo andar, apaixonou-se por ela. O período em que o
ônibus levou para chegar ao ponto e levá-la em direção ao seu destino foi o tempo de
duração da repentina paixão.
Criou um mundo de ilusões em torno da bela estranha. Entre tantos férteis pensamentos,
imaginou sendo ela desquitada e, quem sabe, sendo mãe de um pequeno filho. Talvez fosse
vendedora de alguma loja de roupas e artigos femininos. Devido à hora tarde da noite,
poderia ser que a moça estivesse retornando do trabalho para casa. Carregava nas costas
uma mochila preta e uma sacola de supermercado em uma das mãos. Quem dera estivesse ao
seu lado, pensava, a fim de exercer o cavalheirismo já esquecido por grande parte dos
homens ditos modernos. Queria apenas oferecer-se para segurar a mochila e a sacola que
pesava em seus finos braços, seria um prazer esse pequeno favor. A gentileza, claro,
seria acompanhada de um brilho no olhar e um leve sorriso estampado no canto da boca,
cheio de boas intenções.
Lembrou-se do velho binóculo guardado na gaveta de uma estante. Esse binóculo fora
deixado de "herança" por seu finado bisavô polonês que morrera quando
Vinícius tinha apenas seis anos. Fez pouco uso do objeto de lentes, umas poucas vezes
para assistir mais de perto as confusões geradas por batidas de carro no cruzamento da
esquina e para testemunhar os constantes delitos que ocorriam nos finais de tarde. A
pivetada era como praga naquele bairro. Um verdadeiro terror para a gente idosa que
passava por ali. Finalmente, a herança serviria para assistir algo que
realmente prestasse. As lentes aproximaram a mulher para junto dele, como num simples
passe de mágica, mas a imagem estava desfocada. Deu jeito no foco e pôde, então,
apreciar nitidamente os detalhes que jamais enxergaria a olho nu.
Os olhos da moça, amendoados e um tanto ansiosos, procuravam em meio ao intenso tráfego
o ônibus que a levaria dali. Para a mulher, a demora de quinze minutos era uma
eternidade; para Vinícius, um deleite. Apesar do rosto e do corpo conservados, a idade
era de mulher já feita, por volta dos trinta, no máximo trinta e três. Os cabelos
loiros e lisos contrastavam com a pele morena de sol. Percorreu todo o seu corpo até
chegar nos pezinhos enfeitados pelas unhas pintadas. Calçava sandálias brancas, dessas
que deixam a mulher com ar de imponente. Sem aquelas plataformas, percebia-se que era
mulher tipo mignon, como dizem por aí.
Era nítida a ansiedade da moça. Notava-se pelos suspiros de impaciência causados pelo
atraso da condução. De minuto em minuto trocava de lugar. Pegava o saco plástico e o
colocava no chão, prensando-o entre as pernas já cansadas de permanecerem ali eretas,
criando varizes.
Um sujeito de bermuda, camiseta de time de futebol e chinelos posicionou-se atrás da
moça. As más intenções foram logo denunciadas pelo olhar de tarado que lançava em
direção às nádegas contornadas pela calça justa da mulher. Vinícius sentiu o sangue
esquentar. Teve vontade de descer de onde estava e envolver o pescoço fino do sujeito em
um eficiente mata-leão até lhe causar um merecido desmaio pela falta de respeito com sua
amada estranha. Pensou em alertá-la através de um grito. Não, tanto o mata-leão quanto
o grito excederiam os limites do senso comum e poderiam assustá-la. Além do mais, o que
havia de tão grave em olhar para ela? Era impossível que um homem não se deixasse
fascinar pela beleza atrativa que a envolvia. Não demorou muito e o homem com olhos
impuros subiu num ônibus qualquer e foi-se para longe dali. E novamente ela pertencia
somente a Vinícius.
Ele percebeu, de repente, um certo ar de alívio no rosto da amada. Era o ônibus que
estava chegando finalmente. Em frações de segundos a moça não estava mais lá com a
mochila, o saco plástico e as sandálias brancas. O coletivo, como um grande monstro
sobre quatro rodas, engoliu a pobre moça sem deixar vestígios do seu nome ou telefone.
Vinícius acompanhou de cima do prédio o ônibus partir. Tinha a esperança de vê-la
pela última vez, nem que fosse um pedaço do seu fino braço. No banco onde ela se
assentou, na fileira do lado oposto à sua visão, Vinícius não pôde alcançá-la. O
ônibus partiu e levou de vez a mulher do ponto.
Ela jamais soubera que naquela noite agraciara com sua beleza o coração de um homem que
olhava por um acaso a vida passar. Foi efêmera aquela paixão. Da sua janela, Vinícius
sonhara em envelhecer ao seu lado e, se necessário fosse, morrer de amor por ela. Uma
vida inteira Vinícius viveria ao lado de Maristela. Esse era o nome que inventara para
ela.
E-Mail: ilan.pellenberg@ig.com.br
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