Missão explosiva
Hélio Jorge
Cordeiro
Depois de muitos anos, voltamos a morar no mesmo bairro de onde
havíamos saído pra cidadezinha onde meu pai fora trabalhar no
interior do estado. Eu estudava à noite. Ainda não havia conseguido
um trabalho decente. Sim, porque os que apareciam não me
interessavam, pois meu pai se recusava a apoiar-me a aceitá-los.
Assim foi durante certo tempo. Eu procurava nos classificados,
perguntava às pessoas e, enquanto não aparecia o trabalho de meus
sonhos, eu aproveitava as manhãs para ir à praia. Ainda havia alguns
amigos de antes. Com eles, eu desabafava por ainda estar
desempregado. Alguns deles estavam na mesma situação que eu.
Enquanto dividíamos as mágoas, aproveitávamos para bater uma
bolinha.
Era um dia como esses; eu me acordei já disposto a reclamar da vida
pra todo mundo. Resmungava, dizendo que o mundo era uma merda,
injusto com quem mais desejava mudá-lo, essas coisas. Aquela manhã
começou esquisita, cinza, chuvosa. Uma droga! – Até a natureza está
tramando contra mim! – eu pensava, chateado. Tomei meu café da manhã
e, com a perspectiva de não ter o que fazer, fui ler o jornal do dia
anterior. Foi, então, que minha mãe se aproximou e me disse que eu
tinha que levar as fezes de meu pai para o laboratório, para fazer
um exame. É que o velho andava meio ruim dos intestinos, fazia dias.
Eu só sabia disso porque escutava os dois cochichando pelos cantos
da casa. Eu fiquei chateado com a tarefa de que minha mãe me
incumbira. – Puxa vida, mãe! Levar merda pro laboratório! Aquilo não
era bem o que eu esperava fazer naquele dia, mas só assim eu me
ocuparia com alguma coisa. Falei pra minha mãe que iria, mas só
depois do almoço.
O resto da manhã foi de ler revistas, mexer nas minhas lembranças de
criança, que eu guardava a sete chaves: meus gibis, minhas bolas de
gude coloridas, meu bodoque, ou estilingue, ou ainda baleadeira como
ele é conhecido em outros lugares. Ele ainda estava intacto, apenas
a borracha já estava deteriorada. Era daquelas de amarrar o braço na
hora de tirar sangue, uma vermelha. Eu gostava de olhar pro meu
pião, cujo corpo mostrava as marcas das porradas que havia levado de
outros piões. Sobre o meu pião, eu tinha uma tática para que ninguém
pudesse apanhá-lo na mão. Uma coisa que demonstrava a destreza do
jogador. A tática era a seguinte: eu enrolava o cordel no corpo do
pião com a mão esquerda. Ao contrário de um pião de destro, o meu
pião girava no sentido anti-horário. Essa era a minha vingança! Eu
também tinha guardado os meus botões de chifre de boi. Eram eles que
faziam a nossa alegria nas férias sempre que íamos à casa do tio
Celso para jogarmos futebol de mesa. Tinha também meus álbuns de
figurinhas de cinema e os de futebol. Estes últimos, incompletos,
pois eram daqueles que premiavam quem preenchesse toda a página com
um time de futebol. Por exemplo: havia a página com o time do
Fluminense e que valia uma bicicleta; a do Botafogo, que valia uma
geladeira; a do Flamengo, que valia um rádio de ondas curtas, médias
e freqüência modulada; e a mais valiosa de todas, a da seleção
Brasileira, campeã de 58, que valia uma TV. Quem completasse uma
daquelas páginas ganhava um daqueles prêmios maravilhosos.
Infelizmente, meu álbum ficou com todas as páginas incompletas! A
que mais cheguei perto de completar foi a página do Santos de 59,
que premiava com um liquidificador. Lembro como se fosse hoje. O
time era formado por: Getulio, Álvaro, Ramiro, Mourão, Zito,
Laércio, Dorval, Jair da Rosa Pinto, Coutinho, Pelé e Pepe. No meu,
só faltou a figurinha de Jair da Rosa Pinto para completar e ganhar
pra minha mãe um liquidificador.
Voltando aos exames de fezes. Finalmente, minha mãe me chamou para o
almoço. Meu pai, naquele dia, iria ficar no trabalho e almoçaria por
lá. A chuva havia aumentado. Tava virando uma tempestade. Esperei
sair até o quanto foi possível. Minha mãe ainda tentou me comprar
com um dinheirinho para o cinema, mas me recusei a sair embaixo
daquele toró, por alguns gatos miados. Eu não me vendia barato! Era
chuva pra Noé nenhum botar defeito. A tarde foi chegando ao fim e a
chuva continuava pesada. Minha mãe ligou a tevê, a fim de ter
notícias de como é que estava a cidade debaixo daquela chuva toda. O
plantão de notícias de um canal dizia que, em alguns bairros pobres,
havia desabamento de casas e gente atingida por raios. Eu não
entendia por que apenas os mais miseráveis é que sofriam com esses
temporais. — Por que será que não caem raios em cima de pessoas
ricas, mas apenas em alguns miseráveis que, ao entregar pão de
bicicleta, são fulminados e só os pães é que se safam de serem
torrados pelo raio? Será que há raios discriminadores? — me
perguntava, confuso.
Minha mãe ficou apreensiva pelo meu pai. Telefonou pra ele para
saber se estava tudo bem e ele disse que sim, que ela não se
preocupasse que ele só sairia do trabalho quando a chuva diminuísse.
Minha mãe ficou aliviada. Ligou depois para casa de meu irmão e
também deram boas notícias de lá. Com aquele dilúvio, a minha ida
para o laboratório havia sido transferida para o dia seguinte, se
não chovesse, é claro!
Durante a conversa entre minha mãe e meu pai sobre a chuva, ouvi que
ela tentava disfarçar seu desagrado porque ele havia depositado os
seus dejetos dentro de uma lata de café, daquelas do tipo a vácuo! —
Porra, não é possível que meu pai tenha feito isso!, pensei
surpreso. — Seria possível que não houvesse outro recipiente menor
em casa?!, me perguntei intrigado. Fui matar a minha curiosidade
indo até a geladeira. Ao confirmar que realmente ele havia
depositado sua caca dentro da latinha de café a vácuo, corri e fui
interpelar a minha mãe. Ela me disse que meu pai havia quebrado o
recipiente, próprio para os exames, e que, ao sair muito cedo pro
trabalho, ele não teve outra alternativa senão usar o que lhe
apareceu à mão. Aceitei o argumento dela muito a contra gosto, pois
o recipiente que ele havia escolhido tinha espaço para armazenar um
caminhão de merda. Havia ali cocô suficiente pra adubar uma reserva
florestal. Tudo bem, pensei conformado, convencido de que, quanto
mais merda, melhor. Só assim ficaria mais fácil para detectar o que
de ruim havia com os intestinos de meu pai. Mesmo depois de
racionalizar tudo, a tarefa continuava não sendo agradável. —
Entregador de merda! — resmunguei.
A noite chegou e a chuva continuava atormentando toda a cidade. E
para piorar a situação de calamidade, faltou energia! Minha mãe, que
estava assistindo à sua novela preferida, lamentou com um discreto —
Que merda!, que deu pra ouvir, mesmo dito num tom baixinho lá da
sala. Meu pai, finalmente, chegou. Mais que depressa, a mãe ficou a
tagarelar com ele acerca da chuva, da merda e, é claro, deles
também. Fui dormir, mas com a idéia de sair com a merda ainda
martelando em minha cabeça. Eu nunca desejei tanto que o tempo
parasse, quanto naquele dia, só para não ter o dia seguinte.
Mas, infelizmente, ele chegou. E chegou com um sol brilhante. Céu de
brigadeiro. Não fossem as poças de água nas ruas, nem parecia que
havia tido um vendaval no dia anterior. O sol, às sete da matina,
tava que tava de lascar de quente. Era sol pra rachar até moleira de
cego de feira. Só que eu nem me mexi para sair de casa, apesar das
indiretas de minha mãe. Escapuli antes que ela começasse as suas
corriqueiras chantagens emocionais. Fui para a praia jogar futebol.
Nada de novo. O sol castigava as peles das beldades, dos vendedores
de coco, de cocada, picolé, coxinhas de galinha e empadinhas, de
cerveja, óleo de bronzear, maconha; é, havia também vendedor de
maconha. As mesmas pessoas de sempre; as mesmas briguinhas por causa
de banalidades, as mesmas masturbações dentro d’água na intenção de
alguma gostosa e outras coisas. Só havia uma coisa diferente: a
idéia de ir levar a merda para o laboratório!
Lá pela uma hora da tarde, voltei pra casa, meio jururu. O sol
maltratava o meu couro durante o caminho. Cheguei e corri para um
chuveiro que havia do lado de fora de casa. A água estava mais para
despelar galinha do que para refrescar o couro de um idiota como eu.
Não tinha apetite. Minha mãe estranhou e pensou que eu estivesse
ficando doente. Imediatamente, ela começou a preparar suas mezinhas.
Tive que insistir que não estava doente, por várias vezes, até ela
me deixar em paz. Fui pro quarto me trocar. Voltei e perguntei –
Cadê a merda do homem?! Minha mãe viu naquela pergunta uma dose de
desprezo, misturada com ironia e angústia. Ela foi à geladeira,
pegou a latinha e me entregou. Fiquei olhando para aquela coisa por
um tempão. Foi então que tive uma idéia. Tinha que disfarçar o
troço. Claro, tinha que fazê-lo parecer uma coisa boa, do bem. Fui
correndo para o armário da cozinha onde minha mãe guardava “todas as
coisas que sempre têm mais que uma serventia”. Peguei um pedaço de
papel de presente, durex e fui mostrar a mim mesmo que poderia fazer
pacotes de presentes melhores do que aquelas garotas das lojas de
departamento. Aquelas mesmas, que quando a gente pede “Para
presente, por favor”, elas quase chegam a gozar com a possibilidade
de mostrarem que são mais que funcionariazinhas comuns.
Reparei que minha mãe tinha ido fazer uma coisa qualquer, mas sem
tirar os olhos de mim. O papel, apesar de ter desenhos alusivos ao
natal, dava pra disfarçar o conteúdo maldito. Dei tudo de mim e o
resultado não poderia ser outro: uma verdadeira obra prima de fazer
jus a um emprego na Harrolds de Londres. Nem os mais astuciosos
agentes secretos da KGB, polícia secreta da ex-União Soviética, ou
mesmo da CIA, Agência Central de Inteligência americana, poderiam
imaginar que dentro daquele pacote havia merda genuinamente
brasileira.
Pacote pronto, respirei aliviado. Peguei dinheiro extra com minha
mãe, já que era para uma missão um tanto arriscada. Ela concordou em
me dar mais do que a passagens de ônibus e me desejou boa sorte.
“Boa sorte?!” Claro, ela sabia do mico que eu estava pagando, caso
descobrissem que o conteúdo embaixo daquela pele de cordeiro era
merda pura, cheia de micro organismos nocivos à saúde de um ser
humano. Atravessei o jardim, o portão e, finalmente, ganhei a rua.
E-mail:
hjcordeiro@hotmail.com
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