Consolo
Fátima Mohamad El Kadri
Um estalo a fez compreender o que aconteceu naquela noite de lua cheia e céu pintado de
negro. Ainda não conseguia apreender o sentido de tudo. Ficava pensando que poderia ser
uma piada, um sonho, uma brincadeira de mau gosto, mas não... era a verdade... a verdade
que ela se esforçou para não enxergar. Seu coração está leve e puro agora, embora
não tão puro quanto lhe pareceu aquele surpreendente olhar de anjo que um dia cruzou o
seu. O que sobrou daquela pureza foram lembranças.
Não estava a fim de se recolher. Teve a impressão de que, se dormisse, seria impossível
acordar no dia seguinte. Então resolveu ficar ali, contemplando a lua, muito mais
consoladora do que qualquer ombro amigo.
Há coisas na vida que não tem explicação mesmo. E não era preciso compreender nada,
apenas se acostumar com a idéia. Afinal de contas, tudo é passageiro, tudo é finito. Os
bens materiais se acabam, os sentimentos e os melhores aromas se evaporam no ar. Com o ser
humano não poderia ser diferente.
Se algum dia lhe perguntarem o que restou dele, ela responderá: eu. Porque ela era parte
dele, a parte mais prática, menos emotiva, mas era a parte que ele mais gostava. E ele
tinha algo de maravilhoso, o otimismo. Sempre procurando ver o lado bom da vida. No
início, chegou a pensar que fosse ingenuidade, mas descobriu que era só um truque para
fazer diminuir o peso do fardo que ele carregava... às vezes, isso até a irritava e
dizia: será que não dá para você encarar a vida de maneira mais realista? Não dava. A
realidade havia sido muito cruel com ele. Seu lugar era mesmo a fantasia, agora
compreendia.
Eles se conheceram num bar, numa noite de sexta-feira. Ela estava curtindo uma fossa por
ter levado um fora de um babaca que fingia amar. Na certa porque tinha medo de descobrir o
que era o amor de verdade. Mas quando o viu ali, logo se encantou. Ele veio a ela com seu
olhar doce e sorriso terno. Logo tornaram-se amigos íntimos; ela contou a ele sua
decepção amorosa e ele a consolou como se se conhecessem há anos.
Concluíram, depois de algum tempo, que não há melhor forma de iniciar um
relacionamento. Fazendo o caminho inverso. Começa-se descobrindo as fragilidades , os
defeitos, os deslizes e prepara-se para não cometer os mesmos erros que causaram mágoa
ao outro no passado. Elimina-se, então, tudo o que possa trazer a tristeza, e assim as
pessoas ficam livres para conhecer apenas as qualidades um do outro e serem felizes. E
assim foi por algum tempo...
Até que um dia ele contou a ela um segredo. Sentou a seu lado e começou a falar, com uma
naturalidade assustadora, que tinha pouco tempo de vida. Ela achou que fosse mais uma das
peças que ele costumava pregar, nas quais ela sempre caía feito uma patinha,
fazendo-o soltar uma gostosa gargalhada. Nervosa, ela esbravejava, mas havia um jeito
muito fácil de desarmá-la. Bastava um beijo para que ela ficasse mansinha de novo.
Bem, dessa vez ele tinha um ar sério, incomum. Ficou esperando uma risada debochada
depois da sua cara de espanto, mas ela não veio. Então, abraçou-o, aos prantos. Ele
preferiu o silêncio.
Depois daquele dia, resolveram não contar o tempo. Não sabiam sequer quando um dia
começava e outro terminava; apenas viviam, juntos, batalhando pela vida. Os médicos não
davam esperanças, mas ele resistia, queria vencer Deus pelo cansaço. Achava-se mais
forte que Ele. Em momento algum deixou-se dominar pela fúria. Apesar de sua juventude,
ele era sábio e lhe ensinou que a luta só termina quando o combatente dá o último
suspiro. Era assim que ele pensava, e foi pensando assim que ela atirou na imensidão do
mar as cinzas que restaram naquela caixinha de madeira que carregava junto ao peito.
Afinal, a sua luta ainda não terminou.
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