A esfinge
Edigles Guedes
Era quinta-feira, eu estava meio comovido com tudo que houvera;
ainda assim, procurei seguir a rotina do dia a dia; de tal forma
que, agora, pendurava-me na cigarra do ônibus. O motorista — um
homem de meia idade, cabelos grisalhos, magro, da cor do chão —
atendeu ao meu pedido, brecando o automóvel. Desci atabalhoadamente
e entrei na sala de aula do cursinho de inglês.
Uma sala comum, em que o condicionador de ar fazia um barulho típico
de carro de boi ou de jumento, quando não arreda o pé para lugar
algum; defronte a esse eletrodoméstico havia uma mesa de escritório,
que era usada pela professora; no espaço restante, entre o
condicionador de ar e a mesa de escritório, umas vinte cadeiras para
os alunos; e, também, um quadro branco, que, de vez em quando, a
professora utilizava-o com um pincel atômico, para escrever, e uma
esponja, embebida no álcool, para apagar seus escritos.
Gertrudes — esse é o nome da professora — era uma mulher com seus
quarenta e dois anos bem vividos; embora, pela prática constante de
hidroginástica e aulas de musculação, possuísse um corpo de causar
inveja a qualquer garota de vinte e poucos anos. O seu corpo tinha
um efeito colateral no público masculino: quando ela caminhava com
sua saia justa e blusinha estampada pelos corredores do cursinho,
todos, sem exceção, olhavam-na discretamente com o rabo do olho.
Ela não era cega, e na sua casa havia no mínimo um espelho; pois,
toda mulher, por natureza própria, há de ser vaidosa, e consulta o
espelho psicanalista ao menos três vezes ao dia. Primeiro, é óbvio,
ao acordar com os cabelos desgrenhados; a vaidade dos cabelos fala
mais alto do que a vaidade de sua pele cremosa, cheia de cosméticos
— qualquer mulher que se preze passa uma hora ou uma hora e meia no
cabeleireiro. Segundo, no almoço, com a escusa de retocar o toalete,
como uma flecha que se atira ao alvo, apruma-se o seu cabelo,
completa-se a maquiagem defronte ao primeiro espelho que encontrar,
pode ser um espelho dentro da pior espelunca que já se viu; elas não
querem saber, olham para o seu umbigo e falam ao espelho: — Espelho,
espelho meu, existe alguém mais bela do que eu? e caso o espelho
diga que a Gisele é mais linda do que a Gertrudes, incontinenti, ela
lança o espelho ao chão; porquanto prefere sete anos de azar a
encomendar uma crítica à sua beleza exterior. Terceiro, à noite,
para engambelar o estúpido marido, e passar a mão no bolso dele, no
intuito de, única e exclusivamente, pechinchar o preço aos ouvidos
dos vendedores de produtos de estética feminina.
Como de costume, sentei-me na cadeira da frente; e, face a face,
olhei-a com meus olhos em riste. Eu encarei-a a vera, pois ela
desmanchava-se como doce de leite dentro de seu vestido colante. Por
um ápice, eu sonhei acordado; pensei que estava colado àquele corpo
violão. Já faz dias que eu invejava a sorte de seu vestido,
imaginava-me saindo de lá para cá, tatuado no corpo de Gertrudes;
depois, passei a invejar também a fortuna de sua pele, e almejava
devorá-la literalmente. Eu supunha que amar significava desejar
tanto a pessoa amada, e desejar tantas bem-aventuranças, que para
não se perder ou estragar o amor, era de bom alvitre que a gente
carregasse o amor de nossas vidas em nosso ventre; talvez, por isso,
as mulheres se apeguem sobremaneira a seus filhos. Contudo, o que, a
princípio, era só um pensamento fugaz, desses sem cabeça ou pernas,
foi-se tornando um desejo intenso e maduro.
Antes de vir ao cursinho, eu estava em casa, no meu quarto,
estudando para o vestibular, quando mamãe me flagrou absorto,
ruminando essa idéia; e indagou-me:
— Édipo, meu filho, o que é que estás fazendo com a cara para cima?
Após um susto daqueles, eu endireitei-me na cadeira, e respondi de
imediato:
— Nada, mamãe — disse manipulando o lápis de grafite entre os dedos,
e fitando um problema de equação bi quadrática.
— Então, vá tomar café! que hoje já basta — falou, fingindo
acreditar na minha resposta.
Para mim, foi o mesmo que dizer ao prisioneiro, o seu alvará de
soltura foi entregue ao carcereiro; era justamente assim que eu me
sentia, ao ser obrigado a estudar seis a oito horas por dia: um
prisioneiro! Quantos sacrifícios para conseguir um canudo, com o
diploma, e um chapéu de universitário, ao cabo de quatro anos de
estudos! E, ao final de sua vida, tornar-se apenas mais um homem
frustrado com o estresse cotidiano das grandes cidades. De fato, eu
não entendia essa lógica dos adultos, que procuravam nas
Universidades a sua própria ruína intelectual; cá comigo, eu dizia
que seria diferente, que eu iria cursar o curso dos meus sonhos; no
entanto, o tiro saiu pela culatra. Acabei inscrevendo-me num curso
de engenharia, só para satisfazer os anseios da minha família.
Por que eu mentiria para minha mãe, asseverando-lhe que nada havia?
se, realmente, o meu coração estava aos prantos de fome pela
professora. Não obstante, isso seria algo um tanto quanto descabido.
Como é que se diz simplesmente à mãe:
— Querida mãezinha, eu estou querendo devorar a professora de
inglês!
Com toda sua pachorra, porém, ela espinafrava:
— Ora, quem já se viu tamanho estrupício!… Não falte ao respeito com
a sua mãe, seu moleque!…
Daí em diante, até o momento em que eu conseguisse convencê-la de
que se tratava de jantar a professora à milanesa, quanto tempo e
infortúnios isso me custaria! Não, dizer-lhe a verdade estava
irremediavelmente fora de cogitação, pensei com os meus botões.
Ou rosto a rosto, ou nariz a nariz, a Gertrudes sentou-se à minha
frente na mesa que lhe servia de secretaria e cruzou as pernas, as
quais automaticamente levantavam o seu vestido justo. Eu não via as
suas pernas explicitamente, posto que a meia-calça cobria-as
zelosamente; contudo, caso visse-as, eu tenho certeza que já não me
controlaria, e esse ímpeto eclodiria sem remédio ou panacéia.
Não por mim, mas sim pelos outros, suas indagações de cão policial
cercavam-me; eu precisava de um placebo. Eu precisava de alguma
possibilidade de cura, ainda que fosse enganosa.
Nisto, eu recebi discretamente por meio do meu celular a triste
notícia que minha mãe se suicidara; e sabe quem se incumbiu de tal
notícia? A minha tia Jocasta. Aquilo foi um choque tremendo em
minhas perspectivas interiores; pois, a minha mãe deixara uma carta
em que me repreendia por não lhe ter aberto o meu coração, e fazia
tácita referência ao episódio em que me vira caminhando pelas
nuvens, até cair de lá. É evidente que minha mãe exagerava, eu mesmo
preferiria cair do terceiro andar a cair das nuvens; embora se elas
fossem de algodão doce seria um caso a se pensar.
Guardei o luto por um mês, como manda o manual de boas maneiras; fui
morar com minha tia Jocasta, enquanto ela resolvia a papelada da
herança no cartório e dava entrada na pensão. Ah! se eu chorei a
morte de minha mãe? Qual é o filho que não chora a partida de um
ente querido? Diga-me: quem não chora? Todavia, aquela sensação de
comer, de devorar medrava em mim, uma vez que eu desejava comer as
carnes pútridas de minha mãe morta. Por acaso, eu sou algum chacal
ou ave de rapina, tal qual urubu, para o meu estômago desejar um
jantar ou almoço de carniça?
Era setembro e eu já não me agüentava ao ver Gertrudes nos trinques.
Certa noite, eu convidei-a para sair comigo. De posse da herança, eu
havia comprado um carro conversível, o qual exibia a todos do
cursinho. Enfim, era a minha vez de jogar um charminho encima da
professora, foi aí que surgiu a idéia do convite para jantar; ela
nem sequer piscou o olhou ou pensou duas vezes: de imediato,
aceitou-o.
No restaurante, nós degustamos alguns frutos do mar. A noite estava
perfeita; à luz de velas, nós nos refestelamos. O garçom — um
homenzinho com um metro e cinquenta e três centímetros de
comprimento — demorou-se para entregar-nos a conta.
Gertrudes estava encantadora. Ela olhou atentamente para mim, à
medida que o meu apetite voraz por ela crescia. Seus olhos
despiam-me da cabeça aos pés. Quiçá, também, quisesse me devorar.
Após lauta refeição, fomos juntos à beira-mar. E, à luz da lua, que
fulgia porque fulgia, eu devorei-a carne por carne, osso por osso.
Aliás, quanto mais eu abocanhava e mastigava a Gertrudes, tanto mais
eufórica e insana ela gritava para eu lhe devorar a carne. Logo que
eu palitei os dentes, um pedaço de Gertrudes pulou da minha boca, e
ela disse-me:
— Meu amor, tu não queres comer mais um pedaço de mim!…
Com efeito, eu assustei-me e perguntei:
— Gertrudes, o que foi que te aconteceu? Pois, eu sei que te comi o
corpo todinho.
Ela olhou-me, com os olhos esbugalhados, e retrucou:
— Ora, ora!… Tu não me comeste, apenas me decifraste. Tu tens a
chave para o enigma da mulher que sou.
Por ora em diante, eu já não me chamaria de Édipo; mas sim, de
Esfinge.
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