Ana Lúcia —
aberta e exposta no que tem de mais Ana Lúcia
Elizângela
Araújo
Ana Lúcia voltou a sentir todas aquelas angústias que na verdade
eram apenas aspectos de uma angústia maior - até mesmo maior que ela
própria. Acordou naquela segunda-feira sentindo-se solidária com
Nietzsche. Há tempos tenta desvendar aquele homem, com cujos textos
mantinha uma relação de amor e ódio. Naquela manhã cinzenta, chuvosa
e fria, sentiu mais do que todas as vezes anteriores que era
sozinha, e nisso compreendeu o filósofo que por vezes parecia
arrogante e inumano. No entanto, não teria ele apenas construído um
muro dentro do qual tentou se manter protegido dos outros? Essa
escolha teve seu preço, mas ele não teria sido rico o suficiente
para pagá-lo? Quer tentar pagar o preço de tornar-se ela mesma,
também! E o que significa tornar-se ela mesma? As pessoas não podem
dar o que ela quer. Simplesmente não podem! Voltara a cogitar uma
possibilidade de vida com a qual vinha mantendo flertes nos últimos
anos: celibato. Por que não dedicar-se inteiramente à vida
intelectual? Por que não desistir de vez das pessoas, de todas elas?
Poderia continuar suportando-as no nível superficial das conversas
rotineiras, sem nenhuma profundidade humana, sem, verdadeiramente,
esperar nada de nenhuma delas. Talvez fosse esta compreensão a
oportunidade perfeita para matar qualquer resquício de esperança ou
desejo que desgraçadamente ainda mantinha pela humanidade e pelas
pessoas que de alguma forma fazem parte de sua vida. Por que não
voltar-se inteiramente para si mesma, para os livros, e esquecer-se
de vez de toda essa superficialidade asquerosa à qual as pessoas se
entregam diuturnamente, sem mesmo se perguntar o que fazem de suas
vidas? Há um preço alto a pagar para tornar-se quem realmente é.
Sabe disso. Quem é Ana Lúcia? Há várias Anas Lúcias, mas a base de
todas elas está profundamente abalada, sufocada pelas expectativas
ignorantes com relação a si mesma e aos outros. A Ana Lúcia
essencial está perdida e precisa tornar a si novamente,
urgentemente, sob o perigo de sucumbir à existência sem sentido que
a tenta diariamente. Em algum lugar de si mesma deve se manter
alerta, vigilante, verdadeiramente livre de expectativas que sempre
a desviarão de quem quer se tornar. E o celibato, nisso tudo, mesmo
que não dure pelo resto de sua vida, terá um papel essencial. Por
que chafurdar na lama do sexo vazio, puramente físico? E por que
esperar que para os outros o sexo deva ser um meio e não um fim?
Como indivíduos, temos direitos às nossas próprias escolhas e na
medida em que as fazemos devemos abrir espaço para que os outros
também escolham. Se a maioria das pessoas não pensa, não escolhe,
simplesmente "pega" o que vem pela frente, deve também respeitar
isso. Por uma questão ética, deve respeitar as escolhas de todos,
mesmo que de seu ponto de vista não sejam mais que adoções toscas e
impensadas de hábitos muitas vezes tradicionais e sem sentido. O que
não pode mais é continuar chafurdando com todos na lama da mais
completa e nauseabunda ignorância. É chegada a hora de escolher
entre si mesma - num sentindo muito mais amplo e filosófico do que a
mentalidade comum pode alcançar - e o resto. No entanto, para o
celibato, há muito mais do que convicções e sensações a vencer.
Deverá vencer seu próprio corpo, essa coisa à qual fora condenada a
carregar, com a qual perambula pelo mundo. É certo que Ana Lúcia não
é a mesma coisa que o corpo de Ana Lúcia e, mais certo ainda, é que
Ana Lúcia não pode deixar seu projeto pela fraqueza daquele corpo
que ainda espera beijos e abraços e afagos e todo tipo de
subterfúgios aos quais recorremos para nos anestesiarmos da vida. E
o que Ana Lúcia quer, afinal? O que significa tornar-se Ana Lúcia em
sua plenitude e potência máximas? Ainda não sabe, no entanto, ouve
diariamente os gritos da Ana Lúcia que grita para sair daquele
casulo imundo e escuro no qual está trancafiada. Por fora, Ana
Lúcia, ou o corpo de Ana Lúcia, é igual a todos os outros corpos -
em seu sentido intrínseco. O corpo de Ana Lúcia não tem nada que o
difira dos corpos de outras Anas, Lúcias, Veras, Marias, Elizas,
Martas, Kátias e quantos mais sejam os nomes e corpos que se
arrastam pelo mundo em sua miséria cega da vida e das pessoas. O
corpo de Ana Lúcia não denuncia nada. Sai de casa diariamente,
trabalha, cumprimenta conhecidos, desperta interesses, como todos os
demais. Sente desejos ardentes de compensação sexual. O corpo de Ana
Lúcia não denuncia a verdadeira Ana Lúcia que grita de desespero
dentro daquele mundo inexplorado e, no entanto, tantas vezes
exposto, da maneira mais crua que possa ser exposto, sem que ninguém
se interesse em dar ao menos uma olhada panorâmica. E por que se
expor, Ana Lúcia? Porque ainda espera que alguém, neste século, ou
em qualquer outro em que viva, manifeste algum interesse e queira
compartilhar de seu desespero, de sua busca pela verdadeira essência
de tudo. Mas, se quer encontrar-se a si mesma, deve desistir dessa
parceria, das pessoas. Ana Lúcia tem pela frente uma longa e
tortuosa missão e deve tomar atitudes urgentes se está realmente
decidida a percorrê-lo. Mas Ana Lúcia sente algo que a torna
equiparável a todos os demais nomes e corpos que habitam este
planeta: amor. Ana Lúcia ama. Com que, então —- como diria Machado
de Assis — Ana Lúcia ama! E por mais que ame para si mesma, tentando
não empurrar para as pessoas o peso de seu amor, ama decididamente!
Desistir das pessoas requer que seja ainda mais rigorosa com seus
sentimentos. Desistir das pessoas, no sentido filosófico para o qual
vem se preparando nos últimos anos, significa algo entre abrir mão
de todas as relações e vivê-las, como foi dito acima, num nível
miseravelmente superficial. Sim, o ideal, talvez sua busca maior,
seja compartilhar esse turbilhão de desespero com um parceiro - não
no sentido senso-comum da cópula ou do casamento. Ana Lúcia quer
relacionamentos acima das convenções, dos padrões sociais e morais
aos quais a maioria se entrega tão cordeiramente. Ana Lúcia quer
viver essências, verdades pungentes, no entanto, as pessoas não
podem lhe dar o que quer. Simplesmente não podem! Assim, é melhor
desistir de todas elas!
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