Do intraduzível
Ana Vieira Pereira
Traduzir tem variadas utilidades. Mesmo que às vezes seja possível
ligar uma espécie de piloto automático, na maioria é indispensável
parar, absorver, ler de novo, apoiar-se quem sabe no dicionário de
sinônimos abandonado na prateleira lá de cima. Nem sempre é fácil
encontrar a palavra certa, a tradução exata. Quando o texto é
técnico, vá lá, mas quando tende ao literário, ao fazer-se arte
através da palavra, fica difícil passar adiante.
Há textos em que se aprendem coisas novas. As descobertas por vezes
ocupam tanto espaço que é fácil esquecer o que era mesmo que se
fazia - tentar ganhar a vida traduzindo. Usa-se o tempo para
divagações sem fim, técnica da qual este texto é um bom exemplo,
indiferente aos arquivos que se acumulam na caixa de “a traduzir”.
Alguns (muitos) anos atrás, fiz algumas traduções para a revista
Casa & Jardim. Alguns artigos sobre paisagismo, algo sobre
reciclagem já naquela época, linguagem coloquial fluente, fácil de
entender e de traduzir. Numa das matérias, sobre flores (estava a
primavera por perto), apareceu-me um “pensée sauvage” pela frente,
que eu demorei um tempo a desenvolver dentro de mim. Digo
desenvolver, porque algumas palavras desenvolvem-se, desenovelam-se,
criam algo parecido com uma raiz dentro de nós antes de se lançarem
na língua para a qual se pretendem traduzidas. Essa foi uma delas –
gostei da sonoridade, da ideia de “pensamento selvagem” que com
certeza não seria a tradução correta para os futuros leitores
jardineiros... Fui à procura de quem entendia. Cheguei ao nosso
“amor perfeito”, que é a tal flor, nomeada na nossa língua. Essa
descoberta tomou-me é claro ainda mais tempo - fiquei encantada com
a possibilidade de que o que para nós é um amor perfeito para um
francês seja um pensamento selvagem. Pensem um segundo – é de ficar
muito tempo pensando!
Há ainda aqueles textos em que as palavras são completamente e de
fato intraduzíveis. Quando isso acontece, há duas possibilidades: ou
o autor não soube mesmo se expressar direito (e você que dê seus
pulos para entender o que ele mesmo parece não ter entendido que
queria dizer), ou soube expressar-se tão bem que chega a se
materializar ao seu lado e você imobilizado pelo terrível que soa
qualquer escolha – querendo ou não, sempre se perde.
No fundo, no fundo, não há grandes diferenças entre traduzir e
sentir. Há os sentimentos que entram no automático: não se pensa
muito neles, fazem parte, aí estão. Há os que nos dão um susto – e
ainda ocupam tempo, espaço, energia, dão-nos voltas e voltas e
demoram a sair de nós com autonomia. São pensamentos selvagens
vestidos com as roupas dos amores perfeitos.
E há os intraduzíveis, divididos também naquelas duas
possibilidades: aqueles que não se explicaram e aqueles que, por
meios incomuns, se explicaram tão bem que nos imobilizam. Esses,
palpitam ao nosso lado, às vezes com força, outras apenas
insistentemente. Somente roçam a nossa pele e deslizam os olhos
pelos contornos da nossa sombra. Ainda não encontrei outra solução a
não ser respirar e entrar num outro estado. Metros acima deste
nosso, caracterizado pela força da gravidade, vibram com a leveza de
um arco, entram e saem de nós sem portas e sem travessas, fluem por
entre as nossas células como vento que nos atravessasse sem criar
cadáveres. A esses intraduzíveis sentimentos, como com as palavras,
imagino um dia encontrar-lhes a tradução perfeita, o espaço exato, e
por isso esforço-me em guardá-los onde nada em mim os atinja, para
que, quando possam, me atravessem com a simplicidade de um pássaro
liberto.
E-MAIL:
ventuana@gmail.com
BLOG:
www.quintaventura.com.br
|