Equilíbrio instável
André Tartarini
A tia de Sandra demonstrava inexplicável apreço por mim. Visitávamos pouco Dona
Juliana, poucos eram os motivos. Mas a viúva gostava muito de conversar comigo. Fechada
para a maior parte das pessoas, olhava-me nos olhos e desandava a falar detalhes que nem
sempre me interessavam sobre sua vida.
Doutor Almeida morreu assassinado num churrasco de família. Foi ao banheiro e de lá não
saiu mais. Acusaram Valdir, o caseiro, que havia alguns dias vinha reclamando da maneira
pouco respeitosa com que era tratado pelo patrão. Não conseguiram prendê-lo. Estava
desaparecido desde então. Cheguei a conhecer Valdir. Sujeito calmo, fisionomia leve.
Olhos expressivos e inocentes. Difícil crer que tivesse matado Doutor Almeida; ainda mais
da maneira como tinha matado. Cravou-lhe um ancinho no crânio. Um episódio
estranhíssimo, que a viúva fazia questão de contar em detalhes. Mas sempre com um
sorriso condescendente e uns trejeitos de corpo que pareciam puxar seus seios para fora do
decote. Mesmo com mais de quarenta, era convidativa a figura de Juliana, como ela insistia
que eu a chamasse. Sem o Dona, que ela não era dona de ninguém. E ninguém é meu dono
também não, viu? Aquele sorriso...
Uma vida amorosa intrigante e pouco convencional, tinham ela e o marido. Técnicas e
modalidades de coito me foram apresentadas em nossas conversas. Chorosa, reclamava da
falta que lhe fazia a presença de Astolfo confessava-se a mim naquelas tardes em
que Sandra passava estudando com Marina, as duas trancadas no quarto. De um momento para
outro, passei a freqüentador assíduo da casa. Quando chegávamos, Sandra me beijava
suavemente na boca e trancava-se com a prima; Juliana separava uma dose de uísque, que eu
sorvia ansiosamente, e ela reabastecia quantas vezes eu quisesse. Era nosso segredo, eu
muito novo, ela sorrindo condescendente. Bebíamos juntos e, à medida que a conversa
evoluía, caíamos sempre na armadilha do assunto sexo. As palavras surgiam e
falávamos abertamente. Ela admitiu certa vez ter ficado lubrificada após ouvir um
episódio vivido por mim.
Fazia um ano e, talvez pelo peculiar da data, o episódio da morte remexia-lhe tanto
naquele dia. Juliana contou ter tido relações com o morto em sonho. Rimos daquilo. O
sonho se repetiu. Ela entrava em detalhes quanto aos trabalhos de línguas e mãos, além
de quase descambar para o linguajar técnico quando se detinha aos genitais, de tão
explícita. Experiências gradativamente mais freqüentes e intensas.
Eu insistia que eram apenas sonhos marcantes pela peculiaridade do momento que ela
atravessava e pela falta que tais encontros lhe faziam. Ela insistia que não, a gente
trepou, dizia, vulgar somente comigo. Era recatadíssima. Não comigo. Certo dia me chamou
a seu quarto e mostrou com aquele sorriso no rosto o lençol manchado de
sangue. Não soube o que argumentar; a prova, vermelha, ratificava o que ela garantia ter
acontecido. Foi ele. O Astolfo.
Tanto ela quanto eu sabíamos que aquele equilíbrio instável não duraria por tanto
tempo. Foi na cozinha, onde sempre conversávamos. O armário fez tanto barulho que as
meninas chegaram a diminuir o som do quarto para tentar identificar a origem daquela
chacoalhação. Nem assim, Dona Juliana parou de mexer, pois sentiu que em segundos eu
explodiria entre suas coxas ainda tão rígidas. Rosto ao mesmo tempo tranqüilo e
excitado, não se intimidou quando a porta do quarto da filha foi aberta no fim do
corredor, e passos se aproximavam. Fiquei nervoso e momentaneamente senti que minha
energia poderia recuar em vez de extravasar, mas o rosto dela parecia me convencer de que
naquele momento só havia eu, ela e nossos fluidos. A filha já vinha chegando perto
quando minhas pernas quase falharam, o armário fez um barulho maior ainda, e durante o
transe pude senti-la me segurando para que não fosse desperdiçada uma gota. Ajeitou mais
ou menos o leve vestido, antes que Marina apontasse na entrada da cozinha o rosto
entediado, perguntando que barulho era aquele. A mãe, sorrindo e com as pernas ainda
escorrendo, alegou que estávamos procurando algo sob o armário. A filha mascou duas
vezes o chiclete, olhou para mim, sorriu com o lado da boca e voltou lá para dentro.
Juliana era segura, e viveríamos uma história linda, quente, escura e úmida. Éramos um
deslizar infinito de peles.
Em poucos meses, veio a notícia: estava grávida. Preocupei-me, mas ela disse que eu não
me incomodasse, o filho não era meu. De súbito, minha vontade foi de voar em seu
pescoço. Traidora sem caráter. Contive o impulso, pois o que Sandra iria pensar? De mais
a mais, não cabia sentimento de posse em nossa história, tão desprovida de quaisquer
limitações ou barreiras. Trepávamos e era a isso que se resumia. Mas a placidez com que
ela me contou agrediu-me profundamente. Pudor, talvez fosse o que lhe faltasse. Não
exigíamos nada um do outro, mas há limites a serem respeitados até no mais livre dos
amores.
Quem? Quem? Eu insistia. Ela bebeu o uísque calmamente, ajeitou a saia. Só então
revelou. O pai era o falecido. Como é que é? Ela tinha certeza. Sentia; essas coisas que
mulher diz. Dá para saber. Mulher sempre sabe. Era o finado médico, o autor da proeza.
Garantiu. Os encontros noturnos entre os dois continuavam, ela não fazia segredo, e eu
nada podia fazer. Não tinha como mantê-la acordada permanentemente. Quase não dormia de
madrugada imaginando-a com ele, sem a culpa, sem as limitações do mundo real a
prender-lhes ao possível, às barreiras físicas e seu confinamento. Para mim, a cozinha.
Para ele, todas as dimensões. Não era justo. E agora essa. Desejei que o filho fosse
meu, que nascesse com a minha cara. Minha cabeça girava.
Saí da cozinha às pressas, fui chamar Sandra para irmos embora. Não bati na porta antes
de entrar bruscamente no quarto e concluí que não era para estudar que as duas se
trancavam.
*
* *
Hoje, não sinto raiva ou indignação.
Minha maior angústia é acreditar ter um filho cujo rosto nunca vi. Esses anos talvez
tenham sido suficientes para que Sandra tenha esquecido aquele infeliz ocorrido, como eu
esqueci. Tudo me parece tão menor do que minha agonia que não consigo ver crime em duas
moças se descobrindo. Não me sinto traído, nem sinto tê-la traído com Juliana. Nosso
namoro inocente foi a parte menos relevante de tudo aquilo.
Decidi voltar à casa da mulher de quem fugi com tantas perguntas na cabeça, para vê-la
e à criança. Minha curiosidade me consome. Talvez seja a ânsia de conhecer meu
filho ou de ver com meus olhos, caso a versão dela prevaleça, a materialização de um
encontro tão insólito. Nego-me a concordar com as idéias absurdas da viúva quanto a
seus encontros com Astolfo. A solidão pode destruir a mais sã das consciências. Vai ver
é isso. O filho tem que ser meu. Ainda assim, algo inconsciente não me deixa descartar
por completo a possibilidade estapafúrdia de o finado tê-la de fato engravidado em um
sonho. Não sei, acho que o que mais quero mesmo é comer novamente aquela mulher.
Toco a campainha. Ela abre. Surpresa, dá um gritinho seguido de um sorriso quase
aliviado. Está idêntica a antes. Veste um robe japonês, que havia estreado comigo em
nosso último encontro. Pede que eu entre. Serve um uísque no copo em que eu gostava de
beber. Duas pedras de gelo e umas gotinhas de água tônica, como ela dizia. Está sozinha
em casa. O filho dorme no quarto. Não comenta nada além disso sobre o garoto. Sem me
repreender pela longa ausência, pergunta se eu me lembro do robe. Sorrio e digo que sim.
Ela me beija e vamos para a cama.
No dia seguinte, acordo com uma voz de criança chamando e batendo na porta. Um calafrio
me desce pela coluna e divide-se pelas pernas até as unhas dos pés.
Ela levanta, corre para a porta e a abre. O moleque entra.
O rosto do garoto me é familiar. Em pouco tempo, lembro. É a cara do Valdir, o caseiro.
E-Mail: andrelnt@oi.com.br
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