O patuá
Adriano Neves da Costa
O penetrante calor das três da tarde marcou os encontros de Malaquias e Pepita por
durante um ano.
De amazônico, além da atmosfera úmida, aquela praça só tinha mesmo quatro mangueiras,
uma delas centenária até.
O casal tinha como cenário um ambiente fortuito, de faces difíceis de lembrar, dado a
acontecimentos vagos, sem relevância alguma.
Vivos, além dos insetos rastejantes, eram os jorros de água pelo concreto ladrilhado e
disforme, de desenhos obscuros.
Era nesse lugar, de gente e bancos isolados, que Malaquias se punha a esperar por sua
ambulante. Guardava sua banquinha de cocadas no fusca enferrujado e rumava ansioso por
paixão.
Às vezes, Pepita já o aguardava, contando o dinheiro do dia, conferindo os penduricalhos
que não eram vendidos, afixando-lhes novos preços. Ela se vestia de panos, lenços em
volta dos ombros, que formavam uma singular leveza com os cabelos até a cintura.
Dali partiam para onde somente os dois gozavam de absoluta privacidade. Numa dessas
ocasiões, após os desejos saciados, Malaquias e Pepita conversaram pela primeira vez
sobre o futuro. Ele não via mais, aos quarenta e cinco anos, uma razão para suportar um
filho no fundo de uma rede, deformado por doença rara, e uma mulher alcoólatra.
Perseverava que, mesmo com um fardo na consciência, de tantos outros filhos que abandonou
à própria sorte, frutos de relações conturbadas, alguém o faria sossegar em seio
eterno, com sua vidinha rotineira, sem que problemas o fizessem fugir novamente.
Afinal, para Malaquias não era pecado querer ser feliz com apenas um trabalho, o seu, de
vendedor de doces, um casebre de palafita e noites ardentes com a mulher que escolheu por
tesão e amor, sobretudo sendo a venezuelana Pepita a sua mais nova esperança.
" O que nós temos pra perder? Só a nossa própria vida. Você acha pouco pra
recomeçar?" insistia à parceira. Pepita, com a cabeça encostada ao braço
do vendedor, pôs-se pensativa, enquanto massageava, com a ponta do dedo indicador, um dos
mamilos dele.
" Éres una fruta proibida, mi hombre!"
" Não, nada me proíbe!"
" E su família?"
Ele hesita um pouco. Mas a circunstância, tal como a ansiedade por mudar, enlevou-o a
pensar sobre todo o sofrimento. Nada do que lhe veio à cabeça, porém, precipitou-se a
muitas palavras. Só o que revelou foi a vontade final.
" Nada me proíbe! Vamos!"
Os dois entreolharam-se, demoradamente. Pepita seguiria certamente sua intuição. Errante
desde criança, conhecia as intenções por meio dos olhares humanos, e os sentimentos.
" Yo non quiero fazer-te sofrer!"
Malaquias estava farto do presente. Com toda a experiência adquirida, ainda assim não
sabia distinguir futuro de destino, daquilo que não se pode fugir. Malaquias não se
voltaria tão facilmente contra suas pendências humanas, sem que nada lhe fosse cobrado e
a quem estivesse ao seu redor.
" Me prometa que você vai estar, domingo, me aguardando, no mesmo lugar, de
manhã cedo, pra irmos embora, juntos, pra sempre! Vá, prometa, minha cor de
canela!"
Pepita sorri, e o beija.
" Estarei lá, mi amor! E tu mi levarás!" disse beijando-o
molhadamente na boca.
Exultante, Malaquias fez idéia da tortura que seriam os dias até o domingo.
Em casa, nada mais o perturbava. Via o filho constantemente na rede, como que
despedindo-se aos poucos.
Não falou mais com a mulher. Na mesa, foi onde deixou o dinheiro que ela pediu para pagar
o aluguel do quitinete, sem nem dar conta de que ela o beberia pelo menos à metade.
Tratou com mais entusiasmo os companheiros da rua, e os fregueses.
Engatilhou algumas peças do carro. Comprou combustível barato, ilegalmente, nos fundos
de uma garagem cheia de pneus velhos.
Esteve, enfim, às vésperas.
Demorou a dormir. Punha e retirava o lençol, matou carapanãs, se levantava para ver o
filho, aturou a noite inteira os roncos da bêbada ao lado.
Com o céu clareando, levantou-se de vez. Tudo preparado, as coisas no carro, nada mais,
além de um banho, o faria ficar ali.
Terminado o asseio, olha pela última vez o garoto.
Antes de fechar a porta, pensa: "Até nunca mais, vida dos diabos".
Durante o percurso, largos sorrisos de satisfação. Não havia um rumo certo depois de
apanhá-la na praça. Isso a gente decide!
Ao chegar, não quis incomodar um mendigo deitado no banco, em que costumava esperá-la.
Decidiu aguardar encostado no carro.
Passaram-se as horas, e a paciência. "Mas ela disse que vinha, ela vem"
pensava a cada surto de agonia.
Quando a respiração ofegante já não o deixava mais raciocinar, veio na bicicleta um
garoto, talvez filho de uma prostituta dos arredores.
Entregou-lhe um patuá vermelho, de lã, com o fundo puído.
Malaquias o abriu imediatamente. Lá estavam três pedrinhas de jaspe, e um singelo
bilhete, que dizia:
"Ti prometi, mi amor, i cumpro-te. Vá, leve-me contigo, mi energia, mi sentimiento
estan todos nestas pedras. Leve-me, leve-me ahora, i serás feliz comigo, da maneira que
quiseres."
Não se tratava de uma brincadeira. Malaquias entendeu. Não se moveu do lugar por alguns
minutos. Mas não conseguiu conter o choro, ao entrar no carro encostar a cabeça no
volante.
Chorou incontrolavelmente, até o meio-dia.
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