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Um visitante
Mario Vargas Llosa
Os areais lambem a fachada do curral e terminam ali: do vão que serve de porta ou por
entre os juncos, o olhar escorrega por uma superfície branca e lânguida até encontrar o
céu. Atrás do curral, a terra é dura e áspera, e a menos de um quilômetro começam as
serras brilhantes, cada uma mais alta que a anterior e estreitamente unidas; os picos se
incrustam nas nuvens como agulhas ou lâminas. A esquerda, estreito, sinuoso,
estendendo-se na beira da areia e crescendo sem trégua até desaparecer entre duas
colinas, já bem longe do curral, fica o bosque; matagais, plantas selvagens e um capim
seco e rasteiro que oculta tudo, o solo irregular, as cobras, os minúsculos pântanos.
Mas o bosque é apenas um anúncio da selva, um simulacro: acaba no fim de uma ribanceira,
ao pé de uma montanha maciça, atrás da qual se estende a verdadeira selva. E dona
Merceditas sabe disso; uma vez, anos atrás, subiu até o vértice dessa montanha e de
lá' contemplou, com os olhos assombrados, através das manchas de nuvens que flutuavam
aos seus pés, a plataforma verde, espalhada de alto a baixo, sem uma clareira.
Agora, dona Merceditas cochila deitada sobre dois sacos. A cabra, um pouco mais à frente,
escarva a areia com o focinho, mastiga com empenho uma lasca de madeira ou bale para o ar
morno da tarde. De repente, levanta as orelhas e fica tensa. A mulher entreabre os olhos:
O que foi, Cuera?
O animal puxa a corda que o liga à estaca. A mulher se levanta, penosamente. A uns
cinquenta metros, o homem se recorta nítido contra o horizonte, sua sombra o precede na
areia. A mulher põe uma das mãos na testa como viseira. Olha rapidamente em volta;
depois fica imóvel. O homem já está bem perto; é alto, esquálido, muito moreno; tem o
cabelo crespo e olhos zombeteiros. Sua camisa desbotada ondula sobre a calça de baeta,
arregaçada até os joelhos. Suas pernas parecem dois tarugos pretos.
Boa tarde, dona Merceditas sua voz é melodiosa e sarcástica. A mulher
empalideceu.
O que você quer? murmura.
A senhora me reconhece, não é? Ora, isso é ótimo. Se não for incômodo,
gostaria de comer alguma coisa. E beber. Estou com muita sede.
Aí dentro há cerveja e frutas.
Obrigado, dona Merceditas. A senhora é muito bondosa. Como sempre. Poderia vir
comigo?
Para quê? a mulher olha com desconfiança para ele; é gorda e bastante
madura, mas tem uma pele tersa; está descalça. Você já conhece o curral.
Ah! diz o homem, em tom cordial. Não gosto de comer sozinho.
Dá tristeza.
A mulher vacila um instante. Depois anda até o curral, arrastando os pés na areia.
Entra. Abre uma garrafa de cerveja.
Obrigado, muito obrigado, dona Merceditas. Mas prefiro leite. Já que abriu a
garrafa, por que não bebe?
Não estou com vontade.
Vamos, dona Merceditas, não seja assim. Beba à minha saúde.
Não quero.
A expressão do homem se azeda.
Ficou surda? Eu já lhe disse que beba esta garrafa. Saúde!
A mulher levanta a garrafa e bebe a cerveja lentamente, em pequenos goles. No balcão sujo
e esburacado, brilha uma jarra de leite. o homem espanta com um tapa as moscas que voam à
sua volta, levanta a jarra e bebe um longo gole. Seus lábios ficam cobertos por um buço
de nata que a língua, segundos depois, apaga ruidosamente.
Ah! diz, lambendo-se. Como esse leite estava bom, dona Merceditas. Na
certa é de cabra, não é? Gostei muito. Já acabou a garrafa? Por que não abre outra?
Saúde! A mulher obedece sem protestar; o homem devora duas bananas e uma laranja.
Olhe, dona Merceditas, não se faça de espertinha. A cerveja está escorrendo pelo
seu pescoço. Vai molhar o vestido. Não desperdice as coisas assim. Abra outra garrafa e
beba em homenagem a Numa. Saúde!
o homem continua repetindo "saúde" até ver quatro garrafas vazias no balcão.
A mulher está com os olhos vidrados; arrota, cospe, senta em um saco de frutas.
Meu Deus! diz o homem. Que mulher! A senhora é uma beberrona, dona
Merceditas. Desculpe a franqueza.
Isso que está fazendo com uma pobre velha vai lhe custar caro, Jamaicano. Você
vai ver está com a língua um pouco travada.
É mesmo? diz o homem, entediado. Aliás, a que horas vem o
Numa?
Numa?
Ah, a senhora é terrível, dona Merceditas, quando não quer entender as coisas! A
que horas ele vem?
Você é um negro sujo, Jamaicano. Numa vai matar você.
Não diga essas palavras, dona Merceditas! boceja. Bem, acho que
ainda temos um bom tempo. Certamente até a noite. Vamos tirar um cochilo, certo?
Levanta-se e sai. Vai até a cabra. o animal olha para ele com desconfiança. Desamarra-a.
Volta ao curral fazendo a corda girar como uma hélice e assobiando: a mulher não está.
No ato, desaparece a calma preguiçosa, lasciva dos seus gestos. Percorre o lugar aos
pulos, xingando. Depois anda até o bosquezinho, seguido pela cabra. Esta descobre a
mulher atrás de um arbusto, começa a lambê-la. o Jamaicano ri vendo os olhares
rancorosos que a mulher dirige à cabra. Faz um gesto mínimo e dona Merceditas se
encaminha para o curral.
A senhora é mesmo uma mulher terrível, se é. Cada idéia que tem!
Amarra seus pés e suas mãos. Depois, carrega-a com facilidade e a larga em cima do
balcão. Fica olhando para ela com malícia e, de repente, começa a fazer-lhe cócegas
nas solas dos pés, que são enrugadas e largas. A mulher se contorce com as gargalhadas;
seu rosto revela desespero. O balcão é estreito e, com as sacudidas, dona Merceditas se
aproxima da beira: afinal rola pesadamente para o chão.
Uma mulher terrível, se é! repete. Finge que está desmaiada e fica
me espiando com um dos olhos. A senhora não tem jeito, dona Merceditas!
A cabra, com a cabeça enfiada no curral, olha a mulher, fixamente.
O relincho dos cavalos surge no fim da tarde; já está escurecendo. Dona Merceditas
levanta o rosto e escuta, com os olhos bem abertos.
São eles diz o Jamaicano. Levanta-se num pulo. Os cavalos continuam
relinchando e escoiceando. Na porta do curral, o homem grita, colérico:
o senhor ficou maluco, tenente? Ficou maluco?
Numa curva do morro, detrás de umas pedras, surge o tenente; é pequeno e rechonchudo:
usa botas de montar, seu rosto está suado.
Olha cautelosamente.
Ficou maluco? repete o Jamaicano. o que há com o senhor?
Não levante a voz comigo, negro diz o tenente.
Nós acabamos de chegar. O que está acontecendo?
Como, o que está acontecendo? Mande o seu pessoal levar os cavalos para longe.
Não conhece o seu ofício? o tenente fica vermelho.
Você ainda não está livre, negro diz. Mais respeito.
Esconda os cavalos e corte a língua deles, se quiser. Mas sem fazer barulho. E
espere lá. Eu lhe darei o sinal o Jamaicano abre a boca e o sorriso que se desenha
no seu rosto é insolente. Não entende que agora tem que me obedecer?
O tenente hesita durante alguns segundos.
Pobre de você se ele não vier diz. E, virando a cabeça, ordena:
Sargento Lituma, esconda os cavalos.
Às ordens, tenente diz alguém, atrás da colina. Ouve-se um ruído de
cascos. Depois, o silêncio.
Assim é que eu gosto diz o Jamaicano. Sempre obediente. Muito bem,
general. Bravo, comandante. Parabéns, capitão. Não saia desse lugar. Eu lhe dou o
aviso.
O tenente mostra o punho e desaparece entre as pedras.
O Jamaicano entra no curral. Os olhos da mulher estão cheios de ódio.
Traidor murmura. Você veio com a polícia. Maldito!
Que educação, meu Deus, que educação a sua, dona Merceditas! Não vim com a polícia.
Vim sozinho. Encontrei o tenente aqui. A senhora sabe.
0 Numa não vem diz a mulher. E os policiais vão levar você de
volta para a cadeia. E quando sair, o Numa vai matá-lo.
A senhora tem maus sentimentos, dona Merceditas, sem a menor dúvida. Que coisas me
pressagia!
Traidor repete a mulher; tinha conseguido sentar-se e está muito tesa.
Você pensa que o Numa é bobo?
Bobo? Nada disso. É uma águia de tão esperto. Mas não se desespere, dona
Merceditas. Com certeza ele virá.
Nâo vem. Ele não é como você. Tem amigos. Vão avisá-lo que a polícia está
aqui.
A senhora acha? Eu acho que não, porque não vai dar tempo. A polícia veio pelo
outro lado, por trás dos morros. Eu cruzei o areal sozinho. Em todos os povoados
perguntava: "Dona Merceditas continua no curral? Acabaram de me soltar e eu vou
torcer o pescoço dela." Mais de vinte pessoas devem ter corrido para contar ao Numa.
A senhora ainda acha que ele não vem? Meu Deus, que cara a senhora fez, dona Merceditas!
Se acontecer alguma coisa com o Numa balbuciou a mulher, com voz rouca
, você vai lamentar a vida toda, Jamaicano.
O homem dá de ombros. Acende um cigarro e começa a assobiar. Depois vai até o balcão,
pega a lamparina e a acende. Pendura-a em um dos juncos da porta.
Está ficando escuro diz. Venha cá, dona Merceditas. Quero que o
Numa veja a senhora sentada na porta, à sua espera. Ah, é verdade! A senhora não pode
se mexer. Desculpe, é que sou muito esquecido.
Inclina-se e a pega nos braços. Vai deixá-la na areia, em frente ao curral. A luz da
lamparina cai sobre a mulher e suaviza a pele do seu rosto: parece mais jovem.
Por que você faz isso, Jamaicano? a voz de dona Merceditas é, agora,
fraca.
Por quê? diz o Jamaicano. A senhora não esteve na cadeia, não é
verdade, dona Merceditas? Os dias passam e não há nada o que fazer. A gente se chateia
muito lá, eu lhe garanto. E se passa muita fome. Ah, eu estava esquecendo um detalhe. A
senhora não pode ficar com a boca aberta, nem cogite em começar a gritar quando o Numa
aparecer. Além do mais, poderia engolir uma mosca.
Ri. Revista o quarto e encontra um pano. Com ele enfaixa meio rosto de dona Merceditas.
Observa-a por um bom tempo, divertido.
Desculpe, mas tenho que lhe dizer que a senhora está com um aspecto muito
confortável assim, dona Merceditas. Nem sei o que parece.
Na escuridão do fundo do curral, o Jamaicano se ergue como uma serpente: elasticamente e
sem fazer ruído. Fica inclinado sobre si mesmo, as mãos apoiadas no balcão. Dois metros
adiante, no cone de luz, a mulher está rígida, com o rosto para a frente, como se
estivesse farejando o ar; ela também tinha ouvido. Foi um ruído leve mas muito claro,
vindo da esquerda, que se destacou acima do canto dos grilos. Soa outra vez, mais
prolongado: os galhos do bosquezinho rangem e quebram, qualquer coisa se aproxima do
curral. "Não está sozinho", sussurra o Jamaicano. "Merda." Enfia a
mão no bolso, pega o apito e o mete entre os lábios. Aguarda, sem se mexer. A mulher
fica agitada e o Jamaicano xinga entre os dentes. Vê a mulher se contorcer e mover a
cabeça como um pêndulo, tentando livrar-se da atadura. O barulho cessou: já estará na
areia, que abafa as pisadas? A mulher está com o rosto virado para a esquerda e seus
olhos, como os olhos de um iguana esmagado, sobressaem das órbitas. "Ela os
viu", murmura o Jamaicano. Encosta a ponta da língua no apito: o metal é cortante.
Dona Merceditas continua mexendo a cabeça e grunhe com angústia. A cabra dá um balido e
o Jamaicano se esconde. Segundos depois vê uma sombra descendo sobre a mulher e um braço
nu se estendendo até a atadura. Sopra com toda a força que tem enquanto pula sobre o
recém-chegado. O apito povoa a noite como um incêndio e se perde entre os palavrões que
explodem à direita e à esquerda, seguidos de passos precipitados. Os dois homens caíram
em cima da mulher. 0 tenente é rápido: quando o Jamaicano se levanta, uma das suas mãos
está segurando Numa pelo cabelo e a outra mantém o revólver encostado em sua têmpora.
Quatro guardas com fuzis os rodeiam.
Corram! grita o Jamaicano para os guardas. Os outros estão no
bosque. Rápido! Eles vão fugir. Rápido!
Parados! diz o tenente. Não tira os olhos de Numa. Este, com o rabo do
olho, tenta localizar o revólver. Parece sereno; suas mãos pendem de lado.
Sargento Lituma, amarre-o.
Lituma deixa o fuzil no chão e desenrola a corda que tem na cintura. Amarra Numa pelos
pés e depois o algema. A cabra se aproximou, e depois de cheirar as pernas de Numa
começa a lambê-las,
suavemente.
Os cavalos, sargento Lituma.
O tenente enfia o revólver no
coldre e se inclina em direção à mulher. Tira a atadura e as amarras. Dona Merceditas
se levanta, enxota a cabra com uma pancada no lombo e se aproxima de Numa. Passa a mão
por sua testa, sem dizer nada.
O que ele lhe fez? diz Numa.
Nada diz a mulher. Quer fumar?
Tenente insiste o Jamaicano. O senhor não percebe que os outros
estão ali mesmo, no bosque? Não os ouviu? Devem ser uns três ou quatro, pelo menos. O
que está esperando para mandar buscá-los?
Silêncio, negro diz o tenente, sem olhar para ele. Risca um fósforo e
acende o cigarro que a mulher pôs na boca de Numa. Este começa a dar longas tragadas;
apenas o cigarro entre os dentes e solta a fumaça pelo nariz. Eu só vim buscar
este aqui. Mais ninguém.
Muito bem diz o Jamaicano. Pior para o senhor se não conhece o seu
ofício. Eu já fiz a minha parte. Estou livre.
Sim diz o tenente. Está livre.
Os cavalos, meu tenente diz Lituma. Está segurando as rédeas de cinco
animais.
Ponha-o no seu cavalo, Lituma diz o tenente.
Ele vai com você.
O
sargento e o outro guarda carregam Numa e o sentam no cavalo, depois de desamarrar seus
pés. Lituma monta a seguir. O tenente se aproxima dos cavalos e pega as rédeas do seu.
Escute, tenente, com quem eu vou?
Você? diz tenente, com um pé no estribo.
Você?
Sim, eu diz o Jamaicano. Quem mais podia ser?
Você está livre diz o tenente. Não precisa vir conosco. Pode ir
para onde quiser.
Lituma e os outros guardas, montados nos cavalos, riem.
Que brincadeira é essa? diz o Jamaicano. Sua voz treme. Não vai me deixar aqui,
não é mesmo, tenente? O senhor está ouvindo esses ruídos ali no bosque. Eu me
portei bem. Cumpri o que prometi. Não pode fazer isso comigo.
Se sairmos logo, sargento Lituma diz o tenente , chegamos a Piura ao
amanhecer. Pelo areal é melhor viajar de noite. Os animais se cansam menos.
Tenente grita o Jamaicano; está com as rédeas do cavalo do oficial nas
mãos e as sacode, frenético. O senhor não vai me deixar aqui! Não pode fazer
uma maldade dessas!
O tenente tira um dos pés do estribo e empurra o Jamaicano para longe.
Vamos ter que galopar de vez em quando diz o tenente. Acha que vai
chover, sargento Lituma?
É difícil, tenente. O céu está claro.
Não pode ir embora sem mim! clama o Jamaicano, em altos brados.
Dona Merceditas começa a rir, às gargalhadas, segurando a barriga.
Vamos diz o tenente.
Tenente! grita o Jamaicano. Tenente, eu estou lhe implorando!
Os cavalos se afastam, devagar. O Jamaicano observa, atônito. A luz da lamparina ilumina
o seu rosto transfigurado. Dona Merceditas continua rindo estrondosamente. De repente, faz
silêncio. Leva as mãos à boca, como uma buzina.
Numa! grita. Vou levar frutas para você aos domingos.
Depois, recomeça a rir, bem alto. No bosquezinho brota um rumor de galhos e folhas secas
se quebrando.
Mario Vargas Llosa nasceu em Arequipa, no Peru, em 1936. Jornalista, dramaturgo,
ensaísta e crítico literário, é um dos mais importantes escritores da atualidade.
Viveu em Paris na década de 1960 e lecionou em diversas universidades norte-americanas e
européias ao longo dos anos. Numa incursão ao mundo da política, candidatou-se à
presidência do Peru em 1990, perdendo a eleição para Alberto Fugimori.
Autor de extensa obra literária, foi vencedor dos prestigiosos prêmios Cervantes,
Príncipe de Astúrias, PEN/Nabokov e Crinzane Cavour. Foi agraciado com o Prêmio Nobel
de Literatura, em 2010. O autor divide seu tempo atualmente entre Londres, Paris, Madri e
Lima. Livros publicados pela Editora Objetiva/Alfaguara:
- Os chefes
- Os filhotes
- Sobre as utopias
- A guerra do fim do mundo
- Pantaleão e as visitadoras
- Travessuras da menina má
- A cidade e os cachorros
- A casa verde
- Tia Julia e o escrivinhador
- Elogio da madrasta
- Os cadernos de dom Rigoberto
O texto acima foi extraído do livro "Os chefes, os filhotes", Ed. Alfaguara -
Rio de Janeiro (RJ), 2010, pág. 79, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman.
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