Toca sanfona em
praça pública e sempre consegue mais do que precisa para o quarto
de pensão e o pê-efe. O dinheiro que sobra ele aplica na
Raspinha. Já ganhou duas vezes. Sem saber até hoje, o vendedor bem
quieto ficou com o prêmio.
— Roubando cego, hein! - disse um bêbado que percebeu a malandragem.
Os olhos são duas
caçapas de mesa de sinuca, lacradas por uma courama murcha.
Em Peabiru, foi sanfoneiro de zona. Trabalhava de noite e cochilava
de dia no quarto das mulheres. Os gigolôs nem se incomodavam com a
presença de um morcego.
Em Curitiba,
continua sua vida noturna sob o sol. Das nove às vinte horas pode
ser encontrado no calçadão da Rua XV, nunca no mesmo lugar. Pula
de um canto para outro do tabuleiro este que é o senhor da noite.
Sapo é seu fiel
empresário. Cuida para que ninguém roube as gorjetas. Vigia a
sanfona e o banquinho enquanto Tome sai para o almoço ou para
jogar. Olhos vermelhos de bebida, Sapo recebe indiferente o
sanduíche de pão com vina e a garrafinha de refri. No final do dia
fica com 20% dos lucros, que ele contabiliza errado, roubando o
que pode. Com o que consegue indevidamente, à noite se embebeda.
Agora o Tomé vai
pro restaurante, tateando o chão com a bengala. Os meninos que
catam papel, ao vê-lo, gritam por pura diversão.
— Pega!
— Isso mesmo,
vamos pegar o dinheiro do Tomé.
— Está no bolso
da calça.
— Aproveita que
ninguém tá vendo.
— Agora!
Em pânico, ele
fica parado, atrapalhando as pessoas que passam. Encolhe-se todo,
as mãos protegendo o bolso, e chora em silêncio, na sua solidão de
cego.
As lágrimas
escorrem para dentro.
Miguel Sanches Neto é paranaense, natural de Bela Vista do Paraíso, onde
nasceu em 1965. Aos quatro anos, ficou órfão de pai e passa a viver em Peabiru, no mesmo
estado, onde estudou em colégio agrícola e chegou a trabalhar na agricultura. Mais
tarde, formou-se em Letras. É doutor em Teoria Literária (Unicamp 1998) e
professor de Literatura Brasileira na Universidade Estadual de Ponta Grossa (PR). Crítico
literário da Gazeta do Povo (PR) e da revista Carta Capital, o autor vem recebendo
críticas favoráveis à sua obra, como a recentemente publicada sobre o romance Um
amor anarquista, lançado em 2005 pela Record e que o consagrou como o melhor
autor da sua geração, de acordo com artigo do jornalista Mario Sabino, da revista
Veja (24/08/2005). Recebeu o Prêmio Nacional Luis Delfino pelo livro
Inscrições a giz (FCC, 1991) e o Prêmio Cruz e Souza/2002 por
Hóspede secreto (contos, Record, 2003).
É autor ainda de:
Chove sobre minha infância ( romance, editora Record, 2000);
Você sempre à minha volta (cartas, editora Letras Contemporâneas, 2003);
Abandono (haicais, edição do autor, 2003);
Venho de um país obscuro (poesia, editora Bertrand-Brasil, 2005);
Biblioteca Trevisan (crítica);
Entre dois tempos ( ensaio literário, Unisinos, 1999);
Herdando uma biblioteca (memória, editora Record, 2004);
Amanda vai amamentar (infanto-juvenil, editora Bertrand-Brasil, 2005);
Estatuto de um novo mundo para as crianças (infanto-juvenil, editora Bertrand-Brasil,
2005);
Primeiros contos (contos, editora Arte & Letra, 2008).
O texto acima foi extraído do livro "Primeiros Contos", Editora Arte
& Letra – Curitiba (PR), 2008 - pág. 07.