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Nasce o escritor
Menotti del Picchia
Há dias, porém, estando no Rádio
City, de Nova York, gozando o esplendor do espetáculo mais célebre do mundo com suas cem
estandardizadas "girls" de pernas perfeitas realizando, sem erros, a matemática
de suas danças ginásticas, veio-me à cabeça o saudoso teatrinho de Itapira. A emoção
me tomou. Comparei o valor artístico técnico daquela faustosa apoteose de belezas e de
luzes com a escura ribalta interiorana onde uma companhia andeja de comediantes italianos
representava, para uma parva platéia de caipiras, nada menos nada mais que o Hamlet de
Shakespeare. Eu estava lá, anelante. Adivinhava, mais que compreendia, que o ator,
encarnando Hamlet, realizava um sonho.
Ator fracassado, ficara-lhe na alma o anseio de participar do drama do príncipe torvo.
Avaliava a carga passional que animava esse personagem imortal e ele também queria, fosse
como fosse, viver o instante dramático do filho humilhado e espoliado punindo a mãe
adúltera e o padrasto assassino, usurpador do trono. Havia uma grandeza épica naquele
artista frustrado dando todo seu gênio interior à sua realização histriônica diante
daqueles jecas de boca mole fascinados pelos trajes de máscara dos comparsas e,
sobretudo, pelo lucilar das espadas prateadas e frias.
Raramente me era dado sentir tanto e tão bem a arte mercê do amor que por ela
manifestava aquele mambembe das ribaltas. Que eram os jogos acrobáticos daquelas duzentas
pernas impecáveis na simetria dos movimentos e subversivas na insinuação do sexo,
diante do Hamlet itapirense ele e o gênio de Shakespeare sozinhos no lusco-fusco daquela
ribalta alumiada por lampiões de querosene na qual acordava do seu maravilhoso transe com
as palmas finais dos seus cômicos assistentes?
Todas essas emoções me fatalizavam à sorte de artista. Não havia escapar. Eu me
comovia demais com esse mundo rico de humanidade. Seus panoramas ficavam, cromáticos,
fascinantes na minha memória e os personagens me pediam uma linguagem pela qual pudessem
transladar para outros as emoções que me haviam tão intimamente comunicado. Foi então
que comecei a rabiscar as primeiras páginas de prosa e de verso.
Já lia e muito. Todos os livros de papai ia devorando. Michaud, Flammarion, Alexandre
Dumas, Dante, Tasso, Ariosto. mistura de história, vulgarização científica, ficção,
poemas, o que me caísse diante das pupilas, de Pinocchio a D. Quixote, do drama épico
das cruzadas às aventuras do Conde de Monte Cristo tudo ia devorando à tarde e à noite.
Comecei, então, a escrever um terrível romance de cordel resíduos mentais das aventuras
de dArtagnan e dos personagens de Ponson du Terrail. Era uma história complicada na
qual certamente entrava meu tio-avô capitão, pois parte da trama se passava nas batalhas
napoleônicas. Mamãe era a única leitora dos sucessivos cadernos que lhe apresentava.
Paciente, ela se emaranhava nas aventuras bélicas dos meus personagens entretida mais
pela riqueza episódica do que pelo sentimento, porquanto nessa moxinifada romântica não
entrava mulher.
De certa forma, mesmo castamente, eu estava fora do problema do amor e do sexo.
Os primeiros versos que escrevi foram polêmicos e satíricos. Eu fizera alguma diabrura e
mamãe fechou-me num quarto. A certa altura, pela frincha da porta, reclamei um lanche.
Estava com fome. A travessura deveria ter sido séria, pois mamãe, sempre tão frouxa
pela sua ternura, continuava policial e severa. Então peguei num pedaço de papel rasgado
ao caderno e escrevi.
"Esta é uma coisa desumana.
Mamãe me nega até uma banana."
Fiz escorregar o poema pela frincha da porta e pouco depois esta se abria. Esperava-me o
lanche: bananas com queijo. Descobri, então, uma das utilidades múltiplas da poesia.
Paulo Menotti del Picchia, poeta,
jornalista, romancista, cronista, pintor e ensaísta, nasceu em São Paulo (SP) no dia 20
de março de 1892. Bacharel em Direito, formado em 1913, nesse ano publicou "Poemas
do Vício e da Virtude", seu primeiro livro de poesias. Na cidade de Itapira (SP),
foi agricultor e advogado militante; lá criou o jornal político "O Grito" e
escreveu os poemas "Moisés" e "Juca Mulato". Colaborou em vários
jornais, entre os quais "Correio Paulistano", "Jornal
do Comércio" e "Diário da Noite". Foi diretor de "A
Noite" e "A Cigarra", entre 1920 e 1940, além
de diversos outros jornais e revistas. Um dos articuladores da Semana de Arte Moderna, em
1922, foi um dos mais combativos militantes da estética modernista. Em 1924 criou, com
Cassiano Ricardo e Plínio Salgado, o "Movimento Verdamarelo",
de tendência nacionalista. Publicou vários romances, entre eles "Flama e
Argila", "O Homem e a Morte", "Republica
3000" e "Salomé", além de livros de ensaios e de
crônicas. Em 1937 foi diretor do "Grupo Anta", com Cassiano
Ricardo, e diretor do "Movimento Cultural Nacionalista Bandeira",
com Cassiano Ricardo e Cândido Mota Filho.
Além de jornalista militante exerceu
inúmeros cargos públicos. Foi o primeiro diretor do Departamento de Imprensa e
Propaganda do Estado de São Paulo; deputado estadual em duas legislaturas, membro da
Constituinte do Estado e deputado federal pelo Estado de São Paulo em três legislaturas.
Presidiu a Associação dos Escritores Brasileiros, seção de São Paulo.
Foi agraciado com o título de "Intelectual do Ano", em 1968, e aclamado
"Príncipe dos Poetas Brasileiros", em 1982.
Eleito membro da Academia Brasileira de Letras, em
1942, ocupou a cadeira nº 28 daquele sodalício. Em 1960, recebeu o Prêmio Jabuti de
Poesia, concedido pela Câmara Brasileira do Livro. Destacam-se em sua obra poética os
livros "Juca Mulato" (1917), "As Máscaras"
(1920), "A Angústia de D. João" (1922) e "O Amor
de Dulcinéia" (1931). A poesia de Menotti del Picchia vincula-se à primeira
geração do Modernismo. Em 1984, recebeu o Prêmio Moinho Santista - Categoria Poesia.
O poeta morreu em São Paulo (SP), no dia 23 de agosto de 1988. Há, em Itapira (SP), a
"Casa de Menotti del Picchia", onde podem ser vistos objetos e livros que
pertenciam ao autor.
Obras:
POESIA:
Poemas do vício e da virtude (1913)
Moisés (1917);
Juca Mulato (1917)
Máscaras (1919)
A angústia de D. João (1922)
Chuva de pedra (1925)
O amor de Dulcinéia (1926)
República dos Estados Unidos do Brasil (1928)
Jesus, tragédia sacra (1958)
Poesias, seleção (1958)
O Deus sem rosto, introdução de Cassiano Ricardo (1968)
ROMANCE:
Flama e argila (1920; após a 4a ed., intitulou-se A tragédia de Zilda)
Laís (1921)
Dente de Ouro (1923)
O crime daquela noite (1924)
A república 3000 (1930; posteriormente intitulado A filha do Inca, 1949)
A tormenta (1932)
O árbitro (1958)
Kalum, o mistério do sertão (1936)
Kummunká (1938)
Salomé (1940)
CONTO, CRÔNICA E NOVELA:
O pão de Moloch (1921)
A mulher que pecou (1922)
O nariz de Cleópatra (1922)
Toda nua (s.d.)
A outra perna do Saci (1926)
O despertar de São Paulo
(Episódios dos séculos XVI e XX na Terra Bandeirante)
LITERATURA INFANTO-JUVENIL:
No país das formigas
Viagens de Pé-de-Moleque e João Peralta
Novas aventuras de Pé-de-Moleque e João Peralta
ENSAIO E MONOGRAFIA:
A crise da democracia
A crise brasileira: soluções nacionais (1935)
A revolução paulista (1932)
Pelo amor do Brasil, discursos parlamentares
O governo Júlio Prestes e o ensino primário
O Curupira e o Carão
O momento literário brasileiro
Sob o signo de Polymnia, discursos
A longa viagem, memórias, 2 vols. (1970-1972)
TEATRO:
Suprema conquista (1921)
Jesus; Máscaras
A fronteira.
OBRAS COMPLETAS:
A Noite, 10 vols.
Obras de Menotti del Picchia, Livraria Martins Editora, 14 vols.
Entardecer, antologia de prosa e verso (1978).
Texto extraído do livro "A longa viagem", Livraria Martins Editora - São
Paulo, 1970.
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