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A flor que meus olhos não
quiseram esquecer
Marcelo Moraes Caetano
Fazia um calor ameno sobre a velha rua da cidade. As pedras colocadas há muitos séculos
por mãos escravas arejavam o pavimento com pequenas gramíneas que lhes nasciam no
entorno. Eram ruas de pedra, mas não tinham absolutamente a dureza pétrea que um clichê
desatento ou insensível poderia tentar impor-lhes. Porque eram ruas de pedra lubrificadas
por ervas, gramas e flores minúsculas e delicadas. Dois reinos da natureza o
mineral e o vegetal casados, germinando um elemento de mistério e silêncio.
Essa clareza, mesmo à noite, sob os antigos lampiões a gás, ora iluminados por
anacrônicas lâmpadas elétricas, dava às ruas da cidadezinha um aroma antigo, um
cálido aroma antigo, um nostálgico aroma antigo, à moda dos cavalheiros e das damas de
porcelana que se tem, amiúde, sobre cristaleiras indianas de madeira e madrepérola. Eram
ruas feitas de pedra, mas que negavam a matéria-prima impudicamente: até para pisá-las
era preciso cuidado, ou se quebraria o bibelô que lhes tornava os pedregulhos pequenos
verdadeiros biscuits torneados a mão, um delicado e gentil par de mãos artesãs.
Três horas da madrugada. Os cães dormiam (já haviam desistido de todos os gatos). Os
gatos escondiam-se tão bem entre os telhados e os muros, que se tornavam invisíveis. De
vez em quando um apito bem breve e baixo dava o sinal da tranqüilidade, que, portanto,
deixava de ser discreta e lembrava a todos, contundente, o quanto era importante. E
sumiam-se por dentro de uma viela de pedra, a tranqüilidade, o guarda, seu apito e o
cassetete que já nascera aposentado.
Em uma ou outra calçada se viam cadeiras, reminiscências das conversas que o dia ouve e
produz. Eram cadeiras mortas, então. Cadeiras sem ninguém não passam de folhas ao
vento. E se vão. Havia também alguns brinquedos sem criança.
Todas dormiam.
Algumas davam trabalho; outras, nenhum. Dormiam todas, entretanto. Algumas janelas ficavam
abertas para deixar o vento entrar. Escapavam delas cortinas gázeas de algum tecido bem
diáfano, que nem sequer devia ter nome, pela sua essência de alma feliz.
E, por sinal, havia também almas andando pelas ruas. Silenciosas, algumas; brincalhonas,
outras; melancólicas, solitárias; alegres, aos pares ou grupos. Almas dos antigos da
cidade. Antigos prefeitos, capitães-mores, delegados, juízes, escravos, escravas,
capatazes, sinhás, sinhôs, crianças, avós, boticários, barbeiros, comerciantes
hoje todos iguais e conversando sem Vossa Mercê, Excelência,
Doutor... Nada: apenas almas igualadas pela mesma terra e pelo mesmo ar,
indiferentes às matérias-primas de suas lápides mármore? granito? madeira?
barro?
Tudo igual. Almas passeando iguais, como são iguais início e fim de tudo o que vive.
Eu sou a única pessoa viva a andar pelas ruas a esta hora. A noite me encanta, me seduz e
me chama com seus olhos de coruja e seu coração de pérola gigante. A noite me quer. Que
posso fazer? Observar em silêncio os seus sussurros, e deduzir dali todas as vidas que a
perpassam. Mesmo as almas que desfilam pela noite são vidas que a perpassam, porque a
vida nunca se extingue. E eu, que posso fazer?
Já faço. Conheço um pouco desta cidade, mas um pouco, para ela, é muito. É
muitíssimo. É tudo. Porque nesta cidade não tem muito o que saber. Quem sabe um pouco,
então, já sabe tudo. Sei que a mulher daquela janela aberta, com um contorno amarelo
desbotado, não ama seu marido e quer trocá-lo pelo entregador da farmácia e seus
dezesseis anos de idade.
Sei o quanto dói àqueles pais da casa de porta roxa saberem que seu filho mora tão
longe, numa cidade perversa, grande e malévola.
Sei que as duas senhoras que moram atrás daquele portão de grades verdes são as
últimas que conhecem o segredo antigo dos rendilhados de linha feitos a mão.
Sei o tamanho do sonho daquele menino de varanda branca. Conheço as vontades secretas da
menina da casa azul. Conheço também a mãe do guarda que apita por trás do muro baixo
de hera com gerânios e violetas.
Paro diante da igreja e observo (o que mais eu posso fazer?) duas almas de mãos dadas
entrando para rezar. Pode ser que haja uma missa exclusiva para as almas às três da
manhã.
Pode ser que a alma de algum padre celebre o banquete de Cristo e as almas paroquianas
comunguem da eucaristia cheias de fé e devoção. Quem saberá o que faz essa procissão
de almas com véus e velas entrando na igreja àquela hora?
Por que velam?
Quero participar, mas sei que não fui convidado: não tenho o privilégio delas. Então,
muito delicadamente, em completo silêncio, abaixo-me. Entre as pedras do pavimento da
rua, pequeninas, arredondadas e com o desgaste da erosão dos séculos que as enche de
brilho, como pequenas pérolas brutas, retiro a mais branca flor que vejo nascida entre as
frinchas da rua.
É tão branca, tão branca, que retine à luz do luar, e as almas em procissão se viram
para mim, vendo-me pela primeira vez. Uma ou outra cochicha algo, certamente estranhando a
minha presença que, só agora, elas perceberam, e que soa errada naquele instante e
naquele lugar.
Vou até a porta da igreja. As almas estão assustadas comigo. Estão? Não me reconhecem,
mas eu sou um filho da cidade, como elas. Pouso a miúda flor sob o degrau da igreja.
Vou embora. Está muito tarde. Quero dormir.
Talvez amanhã a mulher da janela amarela desbotada tome uma decisão e se separe logo do
marido. O garoto da farmácia não há de querer esperar muito. Garotos são afoitos.
Sonhos são famintos. Saudades falam alto.
Desejo que tudo aconteça enquanto é tempo. A minha parte eu farei.
Espero que aquela flor que eu sacrifiquei, espero que seu sacrifício tenha valido a
pena...
Marcelo Moraes Caetano é carioca, pianista clássico, com prêmios no
Brasil e no exterior, tradutor de inglês, francês e alemão, e escritor com vários
livros publicados, no Brasil, Estados Unidos, Suécia, França e Inglaterra. Entre eles,
"A clara de ovo" (editora 7Letras, 2003), "Cemitério de Centauros"
(SENAI-FIRJAN, 2007), obra premiada como melhor livro de poesias inédito da XIII Bienal
Internacional de Literatura do Rio de Janeiro), "The white fast egg" (Pg
Editors-USA, 2009), Försiktighetsprincipen, Arbete, eller Konste Kentaurer Kyrkogård,
DMOZ , 2009, "Solidariedade" (ONU-UNESCO, 2005, edição trilíngue, Brasil,
França, Inglaterra), "Educação" (ONU-UNESCO, 2006, edição trilíngue,
Brasil, França, Inglaterra), "Gramática Reflexiva da Língua Portuguesa"
(Editora Ferreira, 2009), "Romances de entressafra" (Editora Vivali, 2005),
"A humanidade na Arca de Noé" (Editora Vivali, 2005), "Gramática para o
Vestibular" (Editora Elite-Maria Anézia, 2009), "Literatura Brasileira para o
Vestibular" (Editora Elite-Maria Anézia, 2009), "Redação para o
Vestibular" (Editora Elite-Maria Anézia, 2009). É especialista em Educação e
Tecnologia pela Universidade Federal Fluminense, Mestrando em Estudos da Linguagem pela
PUC-RIO e pesquisador com dedicação exclusiva pelo CNPq.
O texto acima, inédito, nos foi enviado pelo autor, devendo constar do próximo
livro de contos a ser lançado brevemente.
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