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A coleira no pescoço
Menalton Braff
Nenhum dos dois conseguia disfarçar os danos da velhice, que suportavam em silenciosas e
mútuas acusações. O velho parecia fazer um esforço muito grande para puxar o cão
ladeira acima. A sola seca de seus sapatos esfolava o ladrilho da calçada arrancando-lhe
um ruído ríspido, áspero, como de alguma coisa que se arrasta, e isso irritava o cão,
cuja cabeça se mantinha o tempo todo virada para fora, o focinho apontando para o lado da
rua. Seu corpo todo era uma recusa tensa e escura e ele tinha o olhar aborrecido de quem
não pode esperar mais nada da vida além daquela coleira no pescoço, na ponta de uma
corrente.
Uma língua de vento gelado passou rente ao chão, levantando em revoada, vida efêmera,
folhas mortas de magnólia e de plátano, que se misturavam a outros detritos da rua. Com
seu grosso boné de lã na mão direita, o velho cobriu o rosto e pensou que uma das
maneiras de se morrer pode ser assim mesmo: sufocado pelo cheiro da própria cabeça, um
cheiro de suores noturnos e pesadelos.
A caminhada estava suspensa à espera de que o vento fosse brincar em outras bandas da
cidade, em alguma rua onde, a uma hora daquelas da manhã, ninguém cumprisse o destino de
caminhar. Enquanto isso, parado sobre as pernas muito abertas, o velho suportava paciente
as agulhadas da chuva de areia suspensa no ar.
O cão, de cabeça virada para a rua, permaneceu de olhos fechados, espremendo muito as
pálpebras em proteção, aborrecido com aquele passeio cuja significação extraviara-se
nos anos de sua juventude. Sacudiu a cabeça, abanando suas orelhas dependuradas, frouxas,
porque era esse o modo de expressar sua recusa. Não olhava para a frente. Um rancor muito
antigo impedia que os dois se encarassem. Mesmo por trás, e sem a vigilância daqueles
dois olhos lacrimosos presos em suas órbitas avermelhadas, a figura do velho causava-lhe
repugnância. Por isso o pescoço torto, a cabeça virada para a rua: o lado de fora.
A manhã passava sozinha, sem auxílio nenhum do sol, que se mantinha escondido entre
nuvens grossas e leitosas. O vento amainou e o boné voltou para o alto da cabeça. Sem
proferir uma só palavra, o velho andou coisa de três passos. Outra vez aquele ruído
áspero esfolando os ouvidos sensíveis do cão. Preso à ponta da corrente esticada, ele
apenas manteve o equilíbrio: suas patas tentavam cravar as unhas no ladrilho do passeio,
mas era uma tentativa absurda. Moveu-se o suficiente para não cair. O cão sabia por
experiência que estava preso à ponta de uma corrente esticada. Muitas vezes a vira,
algumas vezes experimentara seus dentes nos elos de ferro. Há muito, entretanto, tinha
desistido da liberdade. Ultimamente intuíra a existência de correntes menos visíveis e
de elos sem forma definida, mas quase todas muito mais rígidas do que os dentes de um
cão. Parado na calçada, pernas trêmulas, ele pressentiu a proximidade da magnólia. A
idade não lhe extinguira o faro. Havia, naquele tronco, imensa variedade de cheiros
sobrepostos demarcando inutilmente o sítio. Gesto atávico, há muito tempo destituído
de qualquer significado. Preso à corrente, nem essa ilusão de poderio lhe era concedida.
A rua subia a ladeira encolhida entre casas de janelas fechadas e algumas árvores de
folhas amarelas. Tosses e vozes mal chegavam às venezianas: a cidade recusava o dia.
Além do velho e do cão, arrastando-se com dificuldade pela calçada, bem poucos
transeuntes, de cabeça baixa, enfrentavam o frio que ainda restava da noite longa.
Cada um tem que cumprir seu itinerário na vida, pensava o velho com o braço esquerdo
esticado para trás, puxando seu fardo. Há muito, entretanto, desistira de olhar-se no
espelho.
Mesmo sendo um fragor conhecido, repetido a cada manhã, o cão encolheu-se um pouco, em
proteção, quando o velho levou com a mão direita o lenço ao nariz. As orelhas pretas e
caídas não se moveram. Além do susto já fraco, de tão cotidiano, suas patas
malferidas na superfície áspera do passeio deveriam ser debitadas também ao
companheiro. O cão piscou seu desconforto à passagem de um carro que desapareceu na
primeira esquina, então foi arrastado por mais três passos.
A dor no ombro esquerdo só poderia ter como causa a teimosia daquele maldito cão, que
nunca aceitava sem resistência as caminhadas matinais. O médico dissera-lhe que era
desgaste da idade, a dor nos joelhos. Não havia razão para duvidar, mas o próprio
desgaste teria sido menor se o companheiro não fosse aquele peso a ser arrastado.
As pernas secas do velho, com seus joelhos gastos, mediam o passeio menos de quarenta
centímetros a cada vez em que se moviam. Compasso hesitante, de articulações
enferrujadas, que pouco se abria. Em sua concentração, havia indícios de uma
desconfiança antiga, principalmente quando seus pés encontraram as arestas duras de
alguns ladrilhos salientes, empurrados para cima por raízes grossas que se escondiam
debaixo da terra. Depois de avançar meia dúzia de metros, o velho parou, suado, a mão
direita espalmada contra uma parede cinza, e então olhou para trás. A progressão
existia, realmente, ou não passava tudo de alguma ilusão? Atrás ou na frente, o que via
não eram pontos a compor um ponto maior, o todo estático? Sempre aquelas dúvidas a
importuná-lo. O cão, pelo menos, o cão estava lá, no fim da corrente, com a cauda
escondida entre as pernas retesadas e trêmulas, mergulhado em seu peso e seu pretume. Ir
até o cão seria cobrir uma distância. Esse foi um pensamento indesejado, pois jamais
faria isso, mas que lhe concedeu a paz de que tinha necessidade.
Nos últimos tempos chegaram a passar dias, semanas, às vezes, sem a troca do menor gesto
que os ligasse. E isso foi acontecendo aos poucos, sem que percebessem. O latido rouco do
cão já não tinha qualquer significado, e o ruído desnecessário exasperava o velho,
que detinha o poder do castigo. Então espancava o companheiro, sem dó, para depois
ralhar com ele, exigindo que ficasse quieto. O cão se encolhia todo e soltava uma
espécie de gemido agudo pela boca fechada. Modelavam-se os dois, um pelas rabugices do
outro. Por fim, aprenderam a engolir o próprio rancor em silêncio.
Quando o Sol por fim se mostrou entre galhos e platibandas, o velho e seu cão já haviam
dobrado a mesma esquina por onde o carro tinha sumido. Primeiro sumiu o velho com sua
altura ameaçada de desabar, depois foi a vez do cão, com a cabeça virada para trás. Os
dois, acorrentados um ao outro, cumprindo uma interminável caminhada.
Menalton Braff, gaúcho de Taquara, após concluído o Ginásio naquela cidade e o
Colegial em Porto Alegre (RS), mudou-se, em 1965, para São Paulo (SP), cidade onde viveu
por mais de vinte anos. Graduou-se em Letras pela Universidade São Judas Tadeu, fez
Pós-graduação (lato sensu) nessa mesma universidade, em que lecionou por cerca de oito
anos. Desde 1987 mora em Serrana, cidade do interior do Estado de São Paulo, onde divide
seu tempo entre o magistério (Língua e literatura), palestras, conclaves culturais e a
produção literária. Ainda na Capital paulista, publicou, sob o pseudônimo de Salvador
dos Passos, um romance (Janela aberta) e uma coletânea de contos (Na força de mulher),
pela Editora Seiva. Depois de receber vários prêmios em concursos de contos, no ano de
2000, seu livro de contos "À sombra do cipreste" (Editora Palavra Mágica) foi
agraciado com o Prêmio Jabuti (Livro do ano ficção). Seguiram-se "Que
enchente me carrega?" (romance, Editora Palavra Mágica), "Castelos de
papel" (Editora Nova Fronteira), romance com que se classificou entre os finalistas
da Jornada de Passo Fundo no ano de 2003. Sua primeira experiência em literatura juvenil
foi a novela "A esperança por um fio", publicada nesse mesmo ano pela Editora
Ática. Em 2004 teve publicados o romance "Na teia do sol" (Editora Planeta do
Brasil) e o romance juvenil "Como peixe no aquário", pela Edições SM, a mesma
editora pela qual lançou, em 2005, "Gambito", seu primeiro livro infantil. Tem
participado de Salões de Idéias e Cafés Filosóficos em Feiras do Livro (Porto Alegre,
Bauru, Sertãozinho, Franca, Ribeirão Preto e Belém do Pará), além do Imaginário do
Autor, na XII Bienal do Rio. Dirigiu várias Oficinas de Contos (Secretaria da Cultura e
Sesc de R.Preto) e foi o Patrono da III Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto.
Na 19ª Bienal do Livro de São Paulo, de 2006, lançou o livro de contos "A coleira
no pescoço", título que ora publicamos e que nos foi enviado gentilmente pelo
autor.
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