Último
texto
Depois
do baile
Leon
Tolstoi
"Então os senhores dizem que o homem não ?capaz
de compreender por si mesmo o que ?mau, dizem que todos dependem do
ambiente, que todos são vítimas do seu meio. Pois penso que tudo
depende do acaso. E falo por experiência própria."
Assim começou Ivan Vassílievich, a quem todos respeitavam, após uma
conversa que tivemos em torno da idéia de que, para aprimoramento
pessoal, ?necessário antes de tudo mudar as condições em que as
pessoas vivem. Ninguém disse propriamente que era impossível
compreender o que ?bom e o o que ?mau, mas Ivan Vassílievitch
tinha aquela maneira peculiar de responder aos próprios pensamentos,
surgidos no correr de uma conversa, e de, sob o efeito de tais
pensamentos, contar episódios da sua vida. Muitas vezes esquecia
completamente o motivo que o levara a contar, deixava-se arrebatar
pelo seu relato, ainda mais porque contava com muita franqueza e
veracidade.
Assim fez também então.
"Falo por experiência própria. Toda a minha vida se constituiu
dessa
forma, e não de outro modo, não em decorrência do meio, mas sim de
algo bem diferente."
"E de que foi então?", perguntamos.
"Pois então conte."
Ivan Vassílievitch pôs-se a refletir, balançou a cabeça.
"Sim", disse. "Toda a minha vida se transformou em uma noite, ou
melhor,
em uma manh?
"O que aconteceu?"
"Aconteceu que eu estava intensamente apaixonado. Apaixonei-me
muitas vezes, mas aquele foi o amor mais forte que senti. Faz tempo;
ela j?tem uma filha casada. Era a B..., sim, Várienka B..." Ivan
Vassílievitch disse o sobrenome da família. "Mesmo aos cinqüenta
anos, ela era de uma beleza notável. Mas na juventude, aos dezoito
anos, era fascinante: alta, esbelta, graciosa e majestosa, majestosa
no rigor da palavra. Sempre se portava de modo extraordinariamente
ereto, como se não pudesse ser de outra forma, com a cabeça um pouco
inclinada para trás, e, com a sua beleza e a sua estatura elevada,
apesar da magreza, que chegava a ser ossuda, aquilo lhe dava um
certo aspecto imperial, que levaria as pessoas a se afastarem, não
fossem o sorriso e a boca sempre carinhosa e alegre, e os olhos
encantadores e brilhantes, e todo o seu ser jovem e gentil"
"Como Ivan Vassílievitch retrata bem."
"Sim, mas, por melhor que eu retrate, ?impossível retratar de modo
que os senhores entendam como ela era. Mas a questão não ?essa: o
que quero contar se passou nos anos quarenta. Eu era, nessa época,
estudante numa universidade de província . Não sei se isso ?bom ou
ruim, mas na época não havia entre nós, em nossa universidade,
nenhum círculo, nenhuma teoria, éramos simplesmente jovens e
vivíamos como ?próprio da juventude: estudávamos e nos divertíamos.
Eu era um rapaz muito alegre, esperto e ainda por cima rico. Tinha
um cavalo fogoso que andava a passo equipado, descia os morros com
as senhoritas (ainda não havia chegado a moda dos patins), fazia
farras com os camaradas (naquele tempo, não bebíamos senão
champanhe; quando não tínhamos dinheiro, não bebíamos nada, nem
vodca, como fazemos agora). Os meus principais prazeres eram as
festas e os bailes. Eu dançava bem e não era feio."
"Ora, deixe de modéstia", interrompeu-o uma das senhoras que o
ouviam. "Afinal conhecemos o seu retrato em daguerreótipo. O senhor
não s?não era feio, como era um homem belíssimo."
"Belíssimo ou não belíssimo, não vem ao caso. O caso ?que, na época
desse que foi o mais forte amor da minha vida, estava eu num baile,
no último dia do carnaval, na casa do chefe da província, um
velhinho bonachão, ricaço, hospitaleiro e camarista da corte. Sua
esposa, tão simpática quanto ele, recebia os convidados num vestido
de veludo marrom, com uma tiara de brilhantes na cabeça, e com o
colo e os ombros descobertos, velhos, fartos, brancos, como um
retrato de Ielizavieta Petróvna. (1)
O baile estava maravilhoso. O salão estava lindo, tinha um coro,
músicos, os famosos conjuntos de servos formados naquele tempo pelos
senhores de terra amantes da música, um buf?magnífico e um mar
transbordante de champanhe, mas não bebi porque sem a bebida eu j?
estava embriagado de amor, em compensação dançava at?me esgotar,
dançava as quadrilhas, as valsas, as polcas, e ?claro, o mais
possível, sempre com Várienka. Ela usava um vestido branco com um
cinto cor-de-rosa e luvas brancas de pelica, que por pouco não
chegavam aos cotovelos magros, pontudos, e uns sapatinhos brancos de
cetim. Tomaram-me a mazurca: o odioso engenheiro Aníssimov, e eu at?
hoje não consigo perdoar-lhe por isso, convidou-a para dançar logo
que ela chegou, enquanto eu corria para o barbeiro e andava atrás de
umas luvas e me atrasava. Assim, não dancei a mazurca com ela, mas
sim com uma alemãzinha que antes eu j?havia namorado um pouquinho.
Mas receio ter sido muito rude com a alemãzinha naquela noite, não
conversei, nem olhei para ela, s?via o vulto alto, esbelto, de
vestido branco e cinto cor-de-rosa, o rosto radiante, ruborizado, as
covinhas, e os olhos carinhosos, meigos. Eu não era o único, todos
olhavam para ela e ficavam encantados, os homens e também as
mulheres, apesar de ela ofuscar todas as outras. Era impossível não
se encantar.
"Por força de uma lei, por assim dizer, não dancei com ela a
mazurca, mas na realidade dançamos quase todo o tempo. Sem se
perturbar, ela atravessava o salão inteiro, direto ao meu encontro,
eu dava um salto para a frente sem esperar o convite e ela, com um
sorriso, agradecia a minha perspicácia. Quando havia troca de pares
e eu era conduzido de volta na sua direção, às vezes ela não
adivinhava o meu passo e segurava outra mão que não a minha,
encolhia os ombros magros e, em sinal de pesar e de consolo, sorria
para mim. Quando fazíamos as figuras da mazurca em tempo de valsa,
valsávamos juntos demoradamente e ela, muitas vezes sem fôlego,
sorria e me dizia: 'Encore. E valsei e valsei e nem sentia o meu
corpo."
"Ora, como não sentia, acho que sentia bastante quando a apertava
pela cintura, sentia não s?o seu corpo, como também o dela", disse
um dos convidados.
De repente Ivan Vassílievitch ficou ruborizado e quase gritou, com
irritação:
"Sim, a?est?como são os senhores, a juventude de hoje em dia. Os
senhores, além do corpo, não enxergam nada. Em nosso tempo, não era
assim. Quanto mais intensamente eu estava apaixonado, mais
incorpórea ela se tornava para mim. Os senhores hoje olham os pés,
os tornozelos e outras coisas, os senhores despem as mulheres pelas
quais estão apaixonados, mas para mim, como dizia Alphonse Karr
(3)
um bom escritor, o objeto do meu amor veste sempre roupas de bronze.
Nós não s?não despíamos, como nos empenhávamos em cobrir a nudez,
como faz um bom filho de No? Ora, mas os senhores não vão
entender..."
"Não lhe dêem ouvidos. E depois, o que houve?", perguntou um de nós.
"Pois bem. Assim, dancei mais com ela e não vi o tempo passar. Os
músicos, j?com um certo desespero de cansaço, os senhores sabem
como acontece no fim de um baile, repetiam os mesmos temas da
mazurca, as mães e os pais j?se haviam levantado das mesas de
cartas nos salões, aguardavam o jantar, os criados passavam correndo
com mais freqüência, levando coisas. Ainda não eram três horas. Era
preciso aproveitar os últimos minutos. Chamei-a de novo para a
mazurca e, pela centésima vez, percorremos o salão.
'"Então, depois do jantar, a quadrilha ser?minha?', perguntei,
enquanto a levava para o seu lugar.
"'Claro, se não me levarem embora', respondeu, sorrindo.
"Não permitirei', disse eu.
"D?me o leque', pediu.
''Fico triste em devolv?lo', respondi, enquanto lhe entregava um
leque branco e baratinho.
“Pois tome isto, para que o senhor não fique triste', disse ela, e
arrancou uma peninha do leque e me deu.
"Segurei a peninha e s?com o olhar pude exprimir todo o meu
entusiasmo e gratidão. Eu estava não s?alegre e satisfeito, eu
estava feliz, abençoado, eu me sentia bem, eu não era mais eu, e sim
uma criatura extraterrena que desconhecia o mal e s?era capaz de
fazer o bem. Escondi a peninha dentro da luva e fiquei parado, sem
forças para separar-me dela.
'"Veja, estão convidando o papai para dançar', disse ela, apontando
para o vulto alto e esbelto do pai, um coronel com dragonas
prateadas que estava na porta, junto ?anfitri?e outras senhoras.
'"Várienka, venha c?, ouvimos a voz alta da anfitri? que usava uma
tiara de brilhantes e tinha ombros ielizavietanos.
"Várienka seguiu na direção da porta e eu fui logo atrás."
'"Ma chère, convença seu pai a dar uns passos de dança com voc?
Vamos, por favor, Piotr Vladislávitch', voltou-se a anfitri?para o
coronel.
"O pai de Várienka era um velho muito bonito, esbelto, alto e
viçoso. Tinha o rosto muito corado, com um bigode branco de pontas
levantadas ?la Nicolas I,
(3) suíças j?brancas que se uniam ao bigode,
o cabelo das têmporas penteado para a frente e, nos lábios e nos
olhos radiantes, o mesmo sorriso carinhoso e alegre da filha. Tinha
um porte magnífico, o peito largo, inflado ?maneira militar, ornado
de medalhas e sem ostentação, os ombros fortes, as pernas compridas
e bem feitas. Era um chefe militar bem ao tipo dos veteranos do
tempo de Nicolau.
"Quando nos aproximamos da porta, o coronel se recusava, dizendo que
havia desaprendido a dançar, no entanto, sorrindo, baixou a mão no
lado esquerdo, desembainhou a espada, entregou-a a um jovem solícito
e, após tirar a luva de camurça da mão direita ?'tudo tem de ser
feito conforme as regras', disse sorrindo ? tomou a mão da filha e
postou-se a um quarto de volta, ?espera do compasso.
"No aguardado início do tema da mazurca, ele bateu agilmente um p?
no chão, esticou a outra perna e sua figura alta, corpulenta,
deslocou-se em redor do salão, num sapateado ora baixo e suave, ora
barulhento e tempestuoso. A figura graciosa de Várienka planava ?
sua volta, de maneira imperceptível, no tempo certo, encurtando ou
esticando os passos dos seus pequenos pezinhos brancos de cetim. O
salão inteiro seguia todos os movimentos do par. Eu não estava
apenas encantado, eu os observava com um enternecimento extasiado.
Comoviam-me sobretudo as botas do pai, com presilhas bem justas ?
boas botas de couro de bezerro, mas não de bico fino, como ditava a
moda, e sim antigas, de bico quadrado e sem salto. Pelo visto,
tinham sido feitas pelo sapateiro do batalhão. 'Para vestir e
apresentar bem a filha querida, ele não compra botas da moda, usa
botas feitas em casa', pensei, e aquelas botas de bico quadrado
enterneceram-me de um modo especial. Via-se que outrora ele dançara
muito bem, mas agora estava pesado e as pernas j?não eram bastante
flexíveis para todos os passos ligeiros e bonitos que tentava
executar. Mesmo assim, deu duas voltas no salão com agilidade.
Quando abriu e logo depois fechou as pernas e tombou sobre um
joelho, ainda que de modo um pouco pesado, enquanto ela, sorrindo e
ajeitando a saia em que o pai havia esbarrado, circundava-o com
suavidade, todos aplaudiram bem alto. Após levantar-se com certo
esforço, o pai tomou carinhosamente nas mãos a cabeça da filha e,
depois de beijar sua testa, trouxe-a para mim, pensando que eu ia
dançar com ela. Respondi que não era eu o seu par."
'"Ora, não importa, dance com ela o senhor, agora', disse o coronel,
sorrindo de modo afetuoso, e recolocou a espada na bainha.
"Tal como acontece com o conteúdo de uma garrafa que, após escorrer
a primeira gota, se derrama em grandes jatos, assim também na minha
alma o amor por Várienka liberou toda a capacidade de amar que
estava oculta dentro de mim. Naquela hora, eu abraçaria o mundo
inteiro com o meu amor. Eu amava também a anfitri?de tiara, com seu
busto ielizavetano, e seu marido, e seus convidados, e seus criados,
e at?o engenheiro Aníssimov, que estava aborrecido comigo. Em
relação ao pai dela, com suas botas feitas em casa e seu sorriso
carinhoso, tão parecido com o da filha, eu experimentava então uma
espécie de sentimento de ternura e enlevo.
'A mazurca terminou, os anfitriões chamaram os convidados para o
jantar, mas o coronel B. recusou o convite, dizendo que no dia
seguinte precisava acordar cedo, e despediu-se dos anfitriões.
Cheguei a temer que ela também fosse embora, porém ficou no baile
com a mãe.
"Depois do jantar, dancei com ela a quadrilha prometida e, embora eu
parecesse estar infinitamente feliz, minha felicidade crescia mais e
mais. Nada falávamos de amor. Eu não perguntava, nem a ela nem mesmo
a mim, se ela me amava. Eu a amava e isso era o bastante. S?temia
uma coisa: que alguém estragasse a minha felicidade.
"Quando cheguei em casa, tirei a roupa e pensei em dormir, mas vi
que era completamente impossível. Tinha na mão a peninha do seu
leque e a sua luva inteira, que ela me dera ao ir embora, no momento
de subir na carruagem, quando ajudei sua mãe e depois a ela. Eu
observava esses objetos e, sem fechar os olhos, via o seu vulto na
minha frente, naquele minuto em que, optando entre dois cavalheiros,
ela adivinhou o sentido do meu passo e ouvi sua voz meiga, quando
dizia: 'Um orgulho, não ?' ?e com alegria me deu a mão, ou quando,
depois do jantar, tomou um gole de uma taça de champanhe e olhou-me
de soslaio com os olhos carinhosos. Porém, mais que tudo, eu a via
dançar com o pai, no momento em que se movia suavemente em torno
dele e, com orgulho e alegria, por si e por ele também, olhava de
relance para os espectadores admirados. E, involuntariamente, uni o
pai e a filha num mesmo sentimento terno e comovido.
"Na época, eu morava com o meu falecido irmão. Ele não gostava da
vida mundana, em geral, e não ia a bailes; naquela altura meu irmão
estava se preparando para o exame de doutoramento e levava uma vida
regrada. Estava dormindo. Observei sua cabeça afundada no
travesseiro, encoberta at?a metade pelo cobertor de flanela, e me
veio uma pena afetuosa em relação a ele, tive pena porque meu irmão
não conhecia e não compartilhava aquela felicidade que eu
experimentava. Nosso servo e criado Petrucha veio ao meu encontro
com uma vela e quis ajudar-me a trocar de roupa, mas dispensei-o. O
aspecto do seu rosto sono-lento, de cabelos emaranhados, pareceu-me
enternecedor e tocante. Tentando não fazer barulho, segui para o meu
quarto na ponta dos pés e sentei-me na cama. Não, eu estava feliz
demais, não podia dormir. Além disso, fazia calor nos cômodos muito
aquecidos e eu, sem tirar o uniforme, sa?de mansinho para o
vestíbulo, pus a túnica, abri a porta e fui para a rua.
"Eu saíra do baile antes das cinco horas, mais umas duas horas se
passaram enquanto fui para casa e fiquei l?algum tempo, portanto,
quando sa? j?estava claro. Fazia um tempo típico de carnaval,
havia uma neblina, a neve encharcada de água derretia nas ruas e
todos os telhados gotejavam. Na época, B. morava no fim da cidade,
junto a um vasto campo, numa extremidade havia uma alameda, na
outra, um colégio interno para moças. Cruzei a nossa travessa
deserta e sa?numa rua grande, onde começavam a se encontrar
pedestres, carroceiros e trenós cheios de lenha, cujos patins
chegavam a raspar na calçada. E os cavalos, que em movimentos
regulares, sob os arreios lustrosos, balançavam as cabeças molhadas,
e os cocheiros, que, cobertos por umas esteirazinhas, batiam forte
no chão as botas enormes ao lado das carroças, e as casas da rua,
que na neblina pareciam muito altas, tudo era para mim singularmente
doce e significativo.
"Quando cheguei ao campo onde ficava a casa deles, avistei na
extremidade, na alameda da direita, algo grande, negro, e ouvi sons
de flauta e tambor que vinham de l? Minha alma cantava o tempo todo
e, de quando em quando, se fazia ouvir o tema da mazurca. Mas aquele
era outro tipo de música, rude e m?
'"O que ?isso?', pensei, e, por um caminho escorregadio que
atravessava o meio do campo, segui na direção dos sons. Depois de
percorrer uns cem passos, comecei a distinguir, por trás da neblina,
muitas pessoas negras. Pelo visto, soldados. 'Um treinamento, na
certa1, pensei, e me aproximei, junto com um ferreiro de peliça
curta e ensebada e de avental, que carregava algo e andava na minha
frente. Os soldados, de uniforme preto, estavam postados em duas
fileiras, uma de frente para a outra, com os fuzis em posição de
descansar armas, e não se moviam. Atrás deles, estavam o flautista e
o tocador de tambor, que não paravam de repetir a mesma melodia
desagradável e estridente.
'"O que estão fazendo?', perguntei ao ferreiro, que havia parado ao
meu lado.
"'Estão castigando um tártaro por deserção', respondeu o ferreiro em
tom zangado, enquanto tentava enxergar a outra ponta das fileiras.
"Fiquei olhando para l?também e vi, no meio das duas fileiras, algo
terrível, que vinha na minha direção. Vinha na minha direção um
homem nu da cintura para cima, preso por cordas aos fuzis de dois
soldados que o conduziam. A seu lado caminhava um militar alto, de
túnica e quepe, cuja figura pareceu-me conhecida. Contorcendo o
corpo inteiro, tropeçando na neve derretida, o castigado avançava na
minha direção sob os golpes que choviam sobre ele de ambos os lados,
ora o homem tombava para trás ?e então os sargentos que o conduziam
preso aos fuzis empurravam-no para a frente ? ora caía para a
frente ?e então os sargentos, segurando-o para que não caísse,
puxavam-no para trás. E, e m se afastar do castigado, o militar alto
caminhava a passo firme, ligeiramente trêmulo. Era o pai dela, com
seu rosto corado, seu bigode e as suíças brancas.
'A cada golpe, o castigado, como que surpreso, virava o rosto
franzido de sofrimento para o lado de onde viera a pancada e,
arreganhando os dentes brancos, repetia sempre a mesma palavra. S?
quando j?estavam bem perto, distingui essa palavra. Ele não falava,
mas sim soluçava: 'Irmãozinhos, tenham d? Irmãozinhos, tenham d?.
Mas os irmãozinhos não tinham d?e, quando o cortejo passou bem
junto a mim, vi como o soldado que estava na minha frente deu um
passo decidido adiante e, com um zunido, brandiu no ar um porrete
antes de golpear com força as costas do tártaro. O tártaro tombou
para a frente, mas os sargentos seguraram-no e uma pancada
semelhante atingiu-o do outro lado, e de novo deste lado, e de novo
do outro. O coronel acompanhava de perto e, olhando ora os próprios
pés, ora o castigado, inspirava inflando as bochechas e soltava o ar
lentamente entre os lábios em bico. Quando o cortejo passou pelo
lugar onde eu estava, vi de relance, entre as fileiras, as costas do
castigado. Era uma coisa colorida, molhada, vermelha, antinatural e
nem acreditei que pudesse ser o corpo de um homem.
"'Ah, meu Deus', exclamou o ferreiro ao meu lado.
"O cortejo começou a afastar-se, golpeavam sem parar, dos dois
lados, o homem tropeçava, se contorcia, e continuavam a bater no
tambor e a assobiar na flauta, e sempre no seu passo firme avançava
a figura alta, esbelta, do coronel, junto ao castigado. De súbito, o
coronel parou e aproximou-se rápido de um dos soldados.
'"Vou ajudar voc?, ouvi sua voz raivosa. 'Quer errar o alvo, ?
Quer mesmo?'
"E vi como ele, com sua mão forte metida numa luva de camurça, bateu
na cara de um soldado baixinho, assustado, fraco, por não ter
baixado o seu porrete com força bastante nas costas vermelhas do
tártaro.
'"Tragam açoites novos!', gritou, virando-se para trás, e me viu.
Fez de conta que não me conhecia, franziu as sobrancelhas com ar
ameaçador e raivoso, deu-me as costas depressa. Senti tamanha
vergonha que, sem saber para que lado olhar, como se eu tivesse sido
apanhado em flagrante no ato mais vergonhoso do mundo, baixei os
olhos e apressei-me a ir para casa. Ao longo de todo o caminho, em
meus ouvidos, ora batia o rufar do tambor e assobiava a flauta, ora
ouviam-se as palavras: 'Irmãozinhos, tenham d?, ora eu ouvia a voz
arrogante e raivosa do coronel que gritava: 'Quer errar o alvo? Quer
mesmo?'. Enquanto isso, no meu coração, havia uma tristeza quase
física, que beirava o enjôo, a tal ponto que parei várias vezes e
pareceu-me que a qualquer momento ia vomitar todo o horror que
entrara em mim por causa daquele espetáculo. Não lembro como cheguei
em casa e me deitei. Porém, assim que comecei a dormir, vi e ouvi
tudo outra vez, e acordei de um salto.
"Na certa, ele sabe alguma coisa que eu desconheço', pensei a
respeito do coronel. 'Se eu soubesse o que ele sabe, entenderia o
que vi e isso não me perturbaria.' Contudo, por mais que eu
refletisse, não conseguia atinar o que o coronel sabia e s?fui
dormir ao entardecer, depois de ter ido ?casa de um amigo e beber
com ele at?ficar totalmente embriagado.
"Pois bem, os senhores pensam que conclu?então que aquilo que vi
era algo ruim? De maneira alguma. 'Se fazem isso com tamanha
convicção e se todos o consideram necessário, quer dizer que sabem
alguma coisa que eu desconheço', pensava, e me esforçava para
descobrir o que era. Porém, como não descobri, não fui capaz de
ingressar no serviço militar, como antes desejava, e não ingressei
tampouco no serviço civil e, como vêem, não servi para nada, em
parte alguma."
"Bem, isso nós sabemos, como o senhor não serviu para nada", disse
um de nós. "?melhor dizer: quantas pessoas não serviriam de nada,
se não fosse o senhor."
"Ora, isso ?uma tolice completa", exclamou Ivan Vassílievitch, com
irritação sincera.
"Bem, e o amor?", perguntamos.
"Amor? A partir daquele dia, o amor começou a minguar. Quando ela,
como lhe acontecia muitas vezes, com um sorriso no rosto, punha-se
pensativa, na mesma hora eu me lembrava do coronel na praça e me
vinha uma sensação tão incômoda e tão desagradável que passei a
encontr?la cada vez menos. E assim o amor deu em nada. Vejam como
são as coisas e o que transforma e governa a vida inteira de um
homem. E os senhores dizem...", concluiu ele.
(1) Tsarina da Rússia entre 1741 e 1762 (N.T.)
(2) Escritor francês (1809-1890) (N T.)
(3) Em francês no original: refere-se ao tsar Nicolau I que reinou
de 1825 a 1855.
(N. T.)
Leon Nikolaievitch Tolstoi, genial escritor
russo, nasceu em 1828 em Iasnaia Poliana. Filho de uma importante
família ligada aos Czares, ficou órfão ainda criança. Freqüentou a
Universidade de Kazan, onde estudou línguas orientais e direito. Em
1847, por herança, tornou-se senhor de vastas terras em
Iasnaia-Poliana, da?porqu?seja também conhecido por "Conde de
Tolstoi". Depois de ter servido no exército, em 1856, viajou pela
Europa visitando vários países, regressando então ?sua terra natal
para administrar suas terras e dedicar-se ?literatura. Em 1861,
voltou novamente a França para visitar seu irmão que se estava
doente, aproveitando para se encontrar com Proudhon. Com uma vida
pessoal cheia de conflitos e uma personalidade dividida, Tolstoi
aproximou-se, gradualmente, de uma posição pacifista e anarquista,
recusando toda forma de governo e poder. Na sua terra natal criou
uma escola marcadamente libertária, próxima das experiências de
Ferrer e da Escola Moderna, tendo pessoalmente escrito os livros
usados nas salas de aula. Seus textos autobiográficos "A Minha
Confissão" e "Qual ?Minha F?quot; foram apreendidos mas, mesmo assim,
tiveram ampla difusão clandestina. Perseguido e excomungado pela
Igreja, seus últimos anos são de engajamento social. Os escritos
filosóficos influenciaram o aparecimento de comunidades e de uma
corrente de anarquismo cristão, sobretudo em França, Holanda e EUA.
Exerceu também, juntamente com Kropotkin e Thoreau, forte influência
sobre um dos mais importantes pacifistas modernos: Gandhi, com quem
chegou a manter correspondência. Faleceu em 1910.
Tolstoi, profundo pensador social e moral e um dois mais eminentes
autores da narrativa realista de todos os tempos, depois das suas
primeiras obras ?entre outras, as autobiográficas "Infância" (1852)
e "Contos de Sebastopol" (1855-1856), baseada em suas experiências
na guerra da Criméia ? escreveu "Guerra e paz" (1865-1869) e "Anna
Karenina" (1875-1877). Considerado um dos romances mais importantes
da história da literatura universal e uma das obras-primas do
realismo, "Guerra e paz" ?uma visão épica da sociedade russa entre
1805 e 1815. Dela emana uma filosofia extremamente otimista, que
atravessa os horrores da guerra e a consciência dos erros da
humanidade.
Entre os romances breves de Tolstoi, o mais importante ?"Anna
Karenina", um dos melhores romances psicológicos da literatura
moderna.
Em "Uma confissão" (1882), descreve sua crescente confusão
espiritual e, após o eloqüente ensaio "Amo e criado" (1894),
escreveu "Que ?a arte?" (1898), no qual condena quase todas as
formas de arte, incluindo as próprias obras. Defendeu uma arte
inspirada na moral, na qual o artista comunicaria os sentimentos e a
consciência religiosa do povo. A partir de então, escreveu numerosos
contos breves, sendo o mais conhecido "A morte de Ivan Ilitch"
(1886). Outras obras de destaque são: "A sonata de Kreutzer" (1889)
e seu último romance, "Ressurreição" (1899).
O texto acima ("Póslie bala", publicado em 1903), foi extraído do
livro "Contos de amor do século XIX", Cia. das Letras ?São Paulo,
2.007 - pág. 446 tradução de Rubens Figueiredo, organizados por
Alberto Manguel.
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