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Refresco de manga
Luís Pimentel
A gorda das fichas tinha um dente de ouro de um lado e um buraco onde deveria ter um dente
no outro canto da boca. Sorria torto, parecendo querer mostrar apenas o brilho dourado
entre os lábios grossos e besuntados de batom. Perguntou minha idade, respondi que tinha
dezoito. Ela disse duvido e ofereci meia verdade: dezessete. Diante do olhar debochado, eu
resolvi abrir o jogo. Tenho dezesseis, mas j?trabalho e j?vim aqui um montão de
vezes.
A gorda perguntou quantas fichas eu queria e respondi duas. Uma de cerveja e uma para a
máquina de música. Vai querer mulher? Depois, eu disse, meio que esnobando. Se der
vontade. Pedi a cerveja ?morena de pernas finas e entrei na fila da máquina de música.
O baixinho com os cabelos cheios de brilhantina parecia o dono da casa. Estacionou a
cadeira em frente ?máquina e tinha bem uma dúzia de fichas na mão. Acabava a música,
ele colocava outra ficha e ouvia novamente o vozeirão de Waldick Soriano:
O nosso amor durou somente uma semana
e eu pensando em conserv?lo a vida inteira.
Eu não pensava que tu fosses leviana,
pois leviana faz amor de brincadeira.
Depois de me fazer ouvir a música não sei quantas vezes, at?decorar a letra, o
baixinho se atracou com uma baixinha que nem ele, de peitos grandes e rolo de plástico
nos cabelos, e sumiu l?para os fundos da casa. A cerveja descia meio atravessada, pois
eu não tinha costume, mas fiz questão de fazer pose de quem tem muita intimidade com o
copo. Acendi um dos três cigarros que comprara a varejo no bar ao lado da casa e dei uma
tragada forte, soltando rápido a fumaça para não engasgar. Coloquei a ficha na caixa de
música e apertei no nome do cantor, Roberto Carlos, depois na canção entre as opções
que apareciam na voz dele, "Não chores mais". A?veio, s?para mim:
Esqueça, ele não te ama.
Esqueça, ele não te quer
Não chores mais, não sofra assim.
O baixinho voltou com as mãos cheias de fichas e me afastei da caixa de música. Não
agüentava mais ouvir Waldick Soriano. Fui me sentar no outro lado da sala, num sof?todo
manchado de cerveja e queimado de cigarros. O copo em uma mão e a garrafa de cerveja na
outra, os olhos conferindo as mulheres que andavam de um lado para o outro, tentando
enxergar a minha irm?
Não foi fácil reconhecer Dalva naquele cenário, com aquelas roupas, maquiada daquele
jeito. Vi quando ela se aproximou, caminhando na direção da mesa onde estava um sujeito
magricela de bigode fino e cara de personagem de história em quadrinhos. Minha irm?
estava irreconhecível, com cigarro no bico e copo de cerveja entre os dedos de unhas
vermelhas, demonstrando a maior intimidade com a casa, os hábitos e os figurantes todos.
Pensei, ?ela, não ?ela, apertei os olhos, porque a luz da sala não era boa, mas
tomando cuidado para não ser reconhecido. O magricela a abraçou pela cintura e levantou
a blusa vermelha que ela usava. A blusa era curta, e ele levantou at?a altura da p?
A?eu vi, de relance, a mancha acima das costelas.
Depois disso minha irm?ainda passou várias vezes ?minha frente, pegando cerveja para
o sujeito de bigodinho, acendendo cigarros para ele e para ela, e toda vez que voltava
para a mesa o tarado levantava a saia minúscula que ela usava e passava a mão na sua
bunda. Eu espichava os olhos para ver se reconhecia também a bunda de minha irm? a
mesma que eu ficava olhando pelo buraco da fechadura enquanto ela tomava banho. Dalva dava
beijinhos no nariz e na testa do magricela, evitando beijar na boca. Puta não gosta de
beijar na boca, e o cara esquisito ainda tinha uns dentes todo arrebentados, possivelmente
pelo efeito da nicotina. Se eu fosse ela também não ia querer dar beijo na boca daquele
sujeito. Minha irm?estava bonita e toda senhora de si. Para l?e para c? ia e
voltava, sem me reconhecer na quase penumbra.
Levantei-me para comprar outra ficha e pegar outra cerveja. Quando voltei para o sof?
não tinha mais ninguém na mesa próxima, nem Dalva nem o magricela. Decidi esperar.
Afinal, ficava tanto tempo remoendo essa visita. Dei o primeiro gole na cerveja e senti
que estava meio enjoado. O cigarro também ajuda no mal-estar. Acendi outro. Espichei os
olhos pelos quatro cantos da sala, procurando minha irm? que não estava em lugar
nenhum. Disse não para a moça feia que se sentou ao meu lado, antes mesmo que a pobre
falasse qualquer coisa. Ela se levantou e saiu dali, não parecia ter se ofendido, se
encostou em outro sujeito solitário. Minha irm?devia estar no quarto com aquele traste,
e isso me aborreceu.
Sou o caçula. Dalva, a irm?mais velha. Eu ainda era pequeno quando ela saiu de casa,
depois de uma discussão com minha mãe e meu irmão. Anunciou que ia morar com uma amiga.
Minha mãe parecia não acreditar nem um pouco na história, mas recomendou, vai com Deus,
sem drama nem lágrimas. Quando Dalva bateu a porta da rua, meu irmão disse, vai ser
puta, eu sei. Bate na boca e pede perdão, minha mãe falou. Perdão nada, vai ser puta.
Meu irmão era um rapazinho, sabia das coisas.
Eu adorava ver minha irm?saindo do banho, uma toalha enrolada no corpo, cobrindo metade
dos peitos. Uma toalha menor enrolada nos cabelos. Passava pelo corredor, onde eu jogava
futebol de botão, derramando pela casa um cheiro vago de sabonete e alfazema. Vestia-se
com a porta do quarto entreaberta, atirava a toalha sobre a cama e escolhia a calcinha,
quase sempre branca.
Quando minha irm?retornou ?sala, de mãos dadas com o esqueleto branco de desenho
animado, eu me perdia na canção desconhecida da caixa de música e na voz distante do
Juca, o ex-amigo de quem um dia quebrei a cara exatamente por causa de Dalva. Juca
repetindo tua irm??da vida, foi vista no puteiro de Laura. Puta ?a tua irm? a tua
mãe e a tua av? E tome tapas, chutes e pescoções. Mergulhei no gelo daquela noite
provinciana e despertei quando ela se sentou ao meu lado, depois de se despedir do
cliente.
A voz que h?tantos anos eu não ouvia: est?sozinho, garotão? Oi, Dalvinha. Os olhos
arregalados sob os cílios anormais. Depois o susto. Depois tristes. O que voc?est?
fazendo aqui, menino? Vim pegar mulher. Voc?não tem idade para isso. Eu me afogando
numa lágrima que não passava pela garganta. Voc?não devia ter vindo aqui. Como vai a
mãe? Por que me fazer passar essa vergonha? e a?não lembro se era a voz de
Dalva ou de Linda Batista, cantando Lupicínio Rodrigues. Como vai a mãe? Como vão
todos? Eu tonto de cerveja morna. Não queria nunca que voc?me visse aqui. O gosto do
cigarro na boca, a fumaça ardendo na alma. Suor e angústia, suor de angústia. Justo
voc?
Não veio procurar mulher nenhuma, não foi? Voc?veio me ver. Como descobriu que eu
trabalhava aqui? Resmunguei isto não ?trabalho e ela disse claro que ? seu bobo,
enxugando minhas lágrimas com a blusa, eu abraçando minha irm?com a blusa levantada,
minha cabeça em seu ombro, a visão novamente próxima da mancha na pele mais marcante da
minha infância.
Se voc?quiser mesmo uma mulher, eu falo com uma amiga que conheço bem, sei que ?
limpa, mas pare de chorar, disse minha irm? Eu não queria mulher nenhuma, nem queria
que ela ficasse naquele tom maternal comigo, nem pensasse que seria a minha primeira vez.
Restava um pouco de cerveja, bastante quente. Beba mais não, a voz delicada de Dalvinha,
me abraçando e dado beijos no meu cabelo. Volte outro dia, volte no meio da tarde, para a
gente conversar e tomar um refresco de manga.
A gorda cochilava e babava em cima das fichas, restavam poucos clientes madrugadores
quando me despedi. Na calçada acertei um chute violento em uma tampa de garrafa, que voou
baixinho e acertou o poste do outro lado da rua. Ainda sou bom nisto, pensei. A noite ?
uma criança de colo. Minha irm?ainda tem aquela marca s?sua nas costelas e não
esqueceu que eu gosto de refresco de manga.
Luís Pimentel nasceu no sertão baiano, entre Itiúba e Gavião, em 1953.
Jornalista e escritor, ?carioca por adoção, tendo trabalhado em diversas redações de
jornais e revistas do Rio de Janeiro. Autor de duas dezenas de livros publicados, entre
obras infanto-juvenis, de contos, de poesia, de textos de humor e sobre fatos e
personagens da música brasileira, como "As miudezas da velha", Prêmio Jorge de
Lima, 1990, "O calcanhar da memória", 2004, e "Grande homem mais ou
menos", Prêmio Cruz e Sousa. Outros livros do autor: "Todas as cores do
mar", 2007; "Luiz Gonzaga", 2007; "Um cometa cravado em tuas
coxas", 2007; "Contos para ler ouvindo música", 2005; "Wilson
Batista"; "Entre sem bater: O humor na imprensa brasileira: do Barão de
Itarar?ao Pasquim 21" e "Piadas para sacanear corintiano: Para alegria de
palmeirense"..
O texto acima foi extraído da antologia "Contos para ler no bar", Editora
Record - 2007, pág. 53, organização de Miguel Sanches Neto.
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