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Rio
Joel Silveira
Certa vez perguntei ao compositor Antônio Nássara, genuíno filho da Rua Ibituruna, no
Maracanã, como ele definia um bom carioca. Isso foi num tempo em que por aqui ainda havia
políticos. Ele me respondeu:
Bom carioca é o que aceita sem ressentimento o fato irremediável de que os bons
empregos não foram feitos para ele. E que inútil é disputar com o filho ou o genro de
um político mineiro os melhores cargos burocráticos. Uma boca pequena em qualquer
repartição pública, onde não tenha que assinar ponto, lhe basta, é o suficiente para
que se sinta realizado e agradecido a São Jorge.
Por sua vez, J. Carlos, o fabuloso chargista, costumava dizer que carioca legítimo é
aquele que "tendo de resolver um problema urgente, adia-o para o dia seguinte, entre
as 3 e 6 da tarde, chega às 8 e ainda bronqueia porque a pessoa com quem marcou encontro
não o esperou".
E Marques Rebelo, carioca do Trapicheiro, escreveu que "o carioca está sempre pronto
para se divertir, e o Rio, em verdade, não é mais que um imenso parque de
diversões". Mas, acrescentava, "com que o carioca se diverte, mesmo, é com as
coisas sérias".
A esses três julgamentos-definições, emitidos por inegáveis conhecedores do assunto,
eu poderia enumerar uma série sem conta de características e marcas especiais que
compõe essa singular criatura sorridente, urbana e versátil, engenhosa e sem
complicações, ao mesmo tempo íntima e eqüidistante, esgarçada e vária, a quem se
chama de carioca, ente de "alma estóica, sensual e carnavalesca" (Manuel
Bandeira). Há quem diga, por exemplo, que carioca legítimo nunca foi ao Pão de Açúcar
ou ao Corcovado. Eu mesmo conheci pelo menos três, dos mais genuínos, que nunca lá
estiveram: o citado Nássara, o pintor Di Cavalcanti, carioca da Rua Riachuelo, e Paulo
Portela. Sei disso porque eles mesmos me contaram. Diz-se também que um bom carioca está
sempre em dia com a geografia e a topografia da sua cidade, sabendo perfeitamente
distinguir (sem que seja preciso recorrer ao livrojá clássico de Brasil Gérson) a Rua
D. Mariana, em Botafogo, da Travessa Mariana, em Ramos; e não desconhece que a Rua da
Coragem ("quem mora lá" dizia Di Cavalcanti "resiste ao
calor local, o mais quente do Rio, abraçado à placa da rua") fica na Penha; a Rua
Emerenciana, em São Cristóvão; e a Visc. de Abaeté, em Vila Isabel. Esse povo do Rio,
do qual se afirma ser o mais tratável e lhano de todo o mundo, é, como se sabe, uma
mistura feliz das mais diferentes tribos.
São tribos nacionais na maioria, que para cá emigraram e continuam emigrando; e,
conseqüentemente, uma mistura também de virtudes e defeitos (serão mesmo defeitos?) que
já existira aqui ou que para cá foi trazida pelas sucessivas levas migratórias e que
muito raramente (na verdade não sei de outro exemplo) pode ser encontrada ao mesmo tempo,
conjuntamente, numa pessoa ou mesmo numa população, como acontece com a gente carioca.
Enumero de cabeça apenas alguns destes atributos, os mais flagrantes: irrefreável
tendência para a vida mansa; bom humor intrínseco e extrínseco; naturalidade;
impossibilidade física e mental de se deixar dirigir pelo relógio; alergia ao
formalismo, ao dramalhão, à hipocrisia (não confundir com cinismo às vezes,
para safar-se, o carioca é de um cinismo que beira ao descaramento); desprendimento;
solidariedade; imunização nata ("carioca já nasce pasteurizado", me disse uma
madrugada Ari Barroso) contra a inveja e o ressentimento; improvisação; enraizado
otimismo que às pessoas mais graves pode parecer irresponsabilidade e muitas vezes
o é; conversa fácil e colorida, mesmo quando quem fala é de poucas letras; espírito
gregário (carioca não sabe viver sozinho); e muitos outros mais. Claro, não é todo
carioca que possui todos esses defeitos e virtudes, ao mesmo tempo, mas o fato é que eles
se combinam perfeitamente, como as contas de um rosário. E fazem do povo do Rio essa
"gente que anda, dança, canta". E que, "entre os morros e as praias, faz a
vida, com os altos e os baixos, e protesta, e ri e vê que, afinal, tudo está bom, e que
mais valem todos os pássaros voando do que um só na mão..." (Álvaro Moreyra).
Levando em conta o rol de características cariocas acima enumeradas, e que somente a
má-vontade e despeito (e como o Rio tem sido vítima dos dois!) poderiam negar, é
evidente que a pergunta O carioca é feliz? pode ser respondida
afirmativamente. Claro que é está na cara, na dele, carioca, e na de sua cidade,
moldura perfeita para a gente que a habita. E vou além: o carioca não é apenas feliz
mas se sente feliz, o que é ainda mais importante. A filosofia mais barata,
a de cordel, ensina que existe uma grande diferença entre ser feliz e sentir-se feliz.
Há por aí uma porção de gente que tem tudo para ser feliz materialmente feliz
, a começar por dinheiro e saúde, e não o é. Já o carioca, que raramente tem
tudo e quase sempre não tem nada, é um ser fisiologicamente feliz, como as crianças e
os gatos porque se sente feliz. Além dos predicados referidos, que fazem do
carioca um ser que se sente feliz, há ainda um outro fator que, na minha opinião
(opinião de quem já é carioca há décadas), torna possível esse sentimento de
felicidade e lhe garante a perenidade. Refiro-me ao profundo, total entendimento entre o
carioca e sua cidade. Os dois se compreendem perfeitamente, completam-se, um está
entranhado no outro. Estabeleceu-se entre ambos um salutar estado de mútua complacência
e de estima recíproca milagroso status urbano que, pelo que sei por já ter visto
ou ouvido dizer, não se encontra em nenhuma outra cidade do mundo do tamanho e da
importância do Rio.
Essa suave atmosfera que se origina das tranqüilas e ternas relações de amizade entre o
carioca e a cidade onde ele mora é que faz com que, no Rio, não só sua gente se sinta
feliz e descontraída, mas igualmente todas as demais gentes que aqui aportam de
passagem ou para ficar. O Rio, como a crase do poeta Ferreira Gullar, não foi feito para
humilhar ninguém. Foi feito para deixar as pessoas à vontade, despojando-as, sem que
elas sintam inibições, reservas e preconceitos que aqui não têm nenhuma razão de ser.
O Rio é a única cidade do Brasil onde o paulista desencabula e o mineiro toma partido.
Além disso, e mercê do seu cosmopolitismo mental, que dela faz uma das
metrópoles mais naturalmente civilizadas do mundo (civilização, aqui, no sentido
de antiprovincianismo), o Rio é uma cidade que possui o raríssimo dom de não se
espantar com coisa alguma, dom que nem Paris tem. A soberba também não é o seu forte.
Feito, como queria Mem de Sá, para ser a Rainhas das Províncias. Isso o Rio tem
sido e será sempre. Mas se não chegar a ser o empório das riquezas do mundo,
como dela queria também o mesmo Mem de Sá, que as riquezas do mundo se lixem. Chicago
(onde passei os dez dias mais opressivos de toda a minha vida, castigado ininterruptamente
pelos gemidos gelados de um vento de filme de terror) está montada nelas e nem por isso
é feliz. E não é por que não tem condições subjetivas para isso; falta-lhe, como em
tantas outras cidades ricas, o que o Rio e os cariocas têm de sobra competência
para ser feliz. Voltando ao fator entendimento recíproco, que faz com que o Rio e o
carioca se completem e se confundam, não sei se é preciso acrescentar aqui que o carioca
só é integralmente feliz (e conseqüentemente alegre) nó Rio. Fora do seu habitat
natural ele se transforma de maneira radical, como certas flores especiais tiradas da
estufa protetora.
Como estas, longe do Rio o carioca murcha, perde a cor e o tom, azinhavra-se e enevoa-se,
e se a ausência do habitat é mais demorada acaba por fenecer por completo. Por
já ter visto com os próprios olhos, e um número sem conta de vezes, sei que não pode
existir pessoa mais triste e sem graça do que o carioca exilado, mesmo que o exílio seja
o mais confortável e bem-remunerado em Paris, em Londres, em Nova Iorque, numa
ilha grega ou em Papeete. Não adianta longe do Rio, carioca não funciona. Perde o
viço e, rendido e indefeso, deixa que dentro de si um lamentável, doentio e suspiroso
estado de espírito tome o lugar da sadia e espontânea alegria que foi expulsa; essa
alegria que é a sua marca especial e inimitável, a que melhor o define e o destaca em
meio ao vário rebanho humano. Ainda na semana passada, em São Paulo, surpreendi num dos
esplêndidos bares da cidade um grupo de jornalistas cariocas, todos meus velhos
conhecidos, que eu sabia terem trocado por magníficos, irresistíveis salários as
amenidades da beira de praia carioca. Do canto do bar, fiquei a olhá-los por alguns
minutos. Lá estavam eles bebendo o uísque de classe (25 cruzeiros a dose), elegantes e
bem-postos em seus ternos bem cortados. Que tristeza em seus olhos! Que tédio mortal em
seus gestos! Apagados, murchos, via-se que bebiam e comiam sem prazer; e não falavam; e
quando falavam era aos cochichos, como num velório. Quem os viu e quem os vê, pensei
comigo mesmo, e meu primeiro impulso foi o de me juntar a eles e, com a ajuda do brasonado
uísque que estavam bebendo, alegrar um pouco aquela ciciante missa de sétimo dia. Mas
achei melhor não. Era muita tristeza (a deles) para uma alegria só (a minha).
À semelhança da esmagadora maioria dos cariocas, sinto-me perfeitamente feliz nesta
cidade. Aqui cheguei numa tórrida manhã de fevereiro (mais precisamente, na manhã do
dia 13 de fevereiro de 1937), vindo pelo Itagiba, simpático ferro-velho que os
alemães iriam afundar, cinco anos depois, exatamente na boca do rio Real, lugar onde
acaba Sergipe e começa o resto do mundo. Quando desembarquei no Armazém 13 (numerozinho
jóia!) tinha de mim 18 anos incompletos, 200 mil réis e uma carta de apresentação para
um figurão federal, carta que, aliás, nunca foi entregue, pois o destinatário mandava
dizer sempre que não estava quando eu ia procurá-lo (já morreu o infeliz, e que a terra
lhe seja leve.) Vim e aqui estou. O meu querido Paulo Mendes Campos escreveu certa
vez, e acertou em cheio, que "o carioca tem o gosto e o dom de igualar os homens, de
refugar as sofisticações, de considerar apenas em cada pessoa, independente de qualquer
valor, a sua capacidade de convívio". Sem querer ser imodesto, acho que sou também
mais ou menos assim. Como igualmente me repugna, como ao Rio, na citação de PMC,
"qualquer pose ou afetação". De forma que sendo o Rio como é e sendo eu como
sou, nosso convívio tem sido bastante fácil e só não é mais por culpa
exclusiva minha, que às vezes engrosso sem motivo. Mas isso só se dá quando, movido por
incontroláveis impulsos telúricos, deixo por alguns instantes de ser carioca e volto a
ser nordestino. O que, graças a Deus, vem acontecendo cada vez mais raramente.
Joel Silveira é sergipano de Aracajú, onde nasceu em 23 de setembro de
1918. Veio para o Rio em 1937, tendo se destacado como jornalista e escritor. Tem
hoje cerca de 40 livros publicados. Foi agraciado com o prêmio "Machado de
Assis", o mais importante da Academia Brasileira de Letras, em 1998, pelo conjunto de
sua obra. Foi também ganhador dos prêmios "Líbero Badaró",
"Prêmio Esso Especial", "Prêmio Jabuti" e o "Golfinho de
Ouro".
O escritor e jornalista faleceu no dia 15 de agosto de 2007 na cidade do Rio de Janeiro.
Texto extraído do livro "Memórias de Alegria", Editora Muad Rio
de Janeiro, 2001, pág. 131.
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