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Pensamentos, palavras e obras
João Ubaldo Ribeiro
Em matéria de pecados, aliás em matéria de religião geral, eu sempre
achei que a pior coisa é os pensamentos. Na aula de catecismo, que
era depois da missa e antes do futebol, quer dizer, a gente só
pecando porque não queria assistir o catecismo, nessa aula dona
Maria José, com aquelas blusas dela de mangas fofolentas e os olhos
piscando o tempo todo e a cara de doente, dizia que se peca por
pensamentos, palavras e obras. Palavras e obras, certo, muito certo,
certo. Mas pensamento é muito descontrolado, de maneira quê todo
mundo tinha dificuldades nessa parte, talvez somente dona Maria José
não tivesse, porque tudo o que ela pensava era catecismo.
Muitas vezes perguntei a minha mãe — e não perguntei a dona Maria
José, porque o que a gente perguntava a ela, ela mandava a gente
estudar e escrever uma dissertação, para ler alto no outro domingo —
como é que a pessoa fazia para não pecar por pensamentos e ela me
disse que bastava não pensar nem besteira nem safadagem. Ora, isso
está todo mundo sabendo, a questão é que a besteira e a safadagem
aparecem o tempo todo, sem ninguém chamar. Mas de fato era uma coisa
muito de admirar que os crescidos todos, na hora da comunhão, iam
sem pestanejar, quer dizer, não tinham pecado nem por pensamento,
por que senão não iam arriscar a receber o corpo de Cristo com tudo
por dentro sujo imundo de pecados. Eu não, eu sempre tive problemas,
porque primeiro nunca deixava de esquecer algum pecado e na hora que
saía é que eu lembrava e aí ficava com vergonha de voltar ao padre e
aí ficava achando que ia comungar sujo imundíssimo. Mas minha mãe
disse que não podia fazer lista de pecados, onde já se viu, que na
hora o Espírito Santo ajudava, mas ele nunca me ajudou, pelo menos
eu nunca notei nada. Enfrentei bastante sofrimento.
No primeiro ano, eu não tive o problema do pecado, porque a comunhão
foi na Páscoa do colégio e eu era o único aluno que ainda não tinha
feito comunhão, de forma que minha mãe me mandou com uma fita branca
desta largura amarrada no braço e descendo com umas franjas, que eu
fiquei envergonhadíssimo. Na outra mão, minha mãe mandou eu segurar
uma vela também amarrada de fita e fiquei mesmo um espetáculo, de
forma que me considerei fazendo penitência o tempo todo e, de
qualquer jeito, só conseguia pensar na fita e na vela, uma coisa
tristíssima de se ver que eu estava e todo mundo me olhando e só não
dando risada porque era uma questão de comunhão. Mas ainda assim eu
fiquei desconfiado e aí, na hora que o colégio todo ficou sentado na
igreja, esperando a missa começar, consegui falar com dona Maria
José, para saber se podia fazer uma confissão de última hora. E
somente um reforço, disse eu, a senhora sabe, a pessoa vai andando,
vai pecando. Palavras e obras, não, mas pensamentos sempre uma coisa
ou outra vai escapando, disse eu, e ela ficou vermelhíssima. Então
ela me levou até um padre alto que estava na sacristia e perguntou a
ele se ele podia ouvir a confissão de última hora de um rapaz e eu
ali me sentindo todo besta, com a fita e aquela vela na mão, mas eu
queria estar garantido, com essas coisas não se brinca, e o padre
era desses que vem logo querendo dar porrada, desses que puxam o
queixo da pessoa e passam uns tapinhas na cara, não suporto. Ah,
quer dizer que veio para a primeira comunhão e não se confessou, não
é, falou ele, puxando minha fita que quase esculhamba tudo e me deu
grande preocupação, porque minha mãe ia botar a culpa em mim e, se
eu botasse a culpa no padre, ainda ia tomar um cachação. Não senhor,
eu me confessei, é que eu estou com um problema. E então o padre foi
mais simpático, me chamou para o canto e disse: qual é o problema?
Raiva da mãe, disse eu para não perder tempo, porque a missa ia
começar e, se eu não estivesse lá na frente, minha mãe ia se
aborrecer. Por causa dessa fita e dessa vela, disse eu. Ah, disse o
padre, dois padre-nossos. Achei barato naquela hora, rezei os dois
padre-nossos, assisti a missa, comunguei e achei que estava tudo
ótimo. E a inocência.
No segundo ano não tinha mais a fita nem a vela, foi um grande
alívio, porém durou pouco, justamente porque, não tendo nem fita nem
vela, sobrou mais espaço para pecados de pensamento e, além disso, a
pessoa vai ficando mais velha e vai pecando mais, é a lei da vida.
Felizmente nesse ano teve retiro no sábado e comunhão no domingo, de
forma que a gente saía correndo da confissão e ia comungar, para não
dar tempo de pecar por pensamento. Também Valdilon, que tem um irmão
padre e deve saber dessas coisas, explicou que o camarada fecha os
olhos, tapa os ouvi- dos e fica fazendo barulhos os mais altos
possíveis com a boca fechada, que ressoa no ouvido e faz aquele
escarcéu etc etc e a pessoa vai evitando o pecado. Com treino, acho
que é possível e de fato Valdilon treinou diversos, mas eu nunca
treinei porque ficava com vergonha de esperar a comunhão no meio
daqueles sujeitos tudo de olho fechado, ouvido tapado e fazendo
mmmnnn-mmmnnn e bzzzz-bbzzz. Mas, de qualquer maneira, essa segunda
comunhão correu muito bem, porque eu comunguei em cima da confissão,
saí leve, leve. Quase na certeza.
Na terceira é que foi muitíssimo pior, porque eu estava numa idade
de viver pecando por pensamentos. É aí que eu até entendi por que o
catecismo fala tanto nos pensamentos, é porque tem gente que se
torna assim como eu me tornei: não faz nada, só pensa maus
pensamentos, todos os tipos. Mesmo fazendo força, não adiantava
nada. Era parar, era estar tendo maus pensamentos. Às vezes eu dizia
assim, franzindo até a testa:não vou ter, não vou ter, sai pra lá, e
cantando músicas alto — vestida de branco ela apareceu, trazendo na
cinta as cores do céu, ave, ave, ave Maria — mas não resolvia: o mau
pensamento zipt! Pronto. Nessa situação, era mais do que difícil uma
boa comunhão, ainda mais que eu dei para, achar que os outros não
tinham esse problema, que era tudo obra das tentações do diabo do
cão, não se podia confiar em ninguém.
E teve coisas piores nesse ano. Minha irmã ia fazer primeira
comunhão e minha mãe fez uma mesa especial, muito mais especial do
que a minha, que nem foi especial. Quer dizer, pecado da inveja. E
depois tinha de ficar em jejum e eu quase como uma bolachinha de
goma, só não comendo porque meu anjo da guarda foi forte e apareceu
gente na hora de pegar a bolacha. Pecado da gula, mais sacrilégio. A
madrinha de minha irmã apareceu da Bahia e eu fiquei olhando para as
pernas dela: conte ai mais pecados, começando de cem. Meu pai me deu
dez mil-réis e deu cinco a minha irmã e pediram para eu comprar um
santinho para mim e um para ela, todos os dois com meu dinheiro e eu
não gostei. Pecado da avareza e mais diversos quebrados e mistos.
Quando chegou na igreja, eu já estava suando e nesse dia não era uma
questão de esquecimento na confissão, nem nada disso. Cada respirada
que eu dava, tome uma pecada. A missa ia andando, ia andando e eu
vendo a danação chegando, até que não 3güentei mais e aproveitei que
meu pai assistia missa lá de fora fumando, e minha mãe não podia
gritar comigo na igreja e então disse a meu pai que queria ter uma
conversa com ele de homem para homem, se ele não ia rir. Não vou
rir, disse meu pai. Pois então, pois então eu quero ficar aqui na
igreja até a outra missa, possa ser a missa das nove, das dez, das
onze ou de meio-dia. Quero ficar para comungar depois de confessar
direito. Muito bem, disse meu pai, quando voltar traga uma garrafa
de clarete único da bodega de seu Barreto e volte antes de uma hora.
Minha mãe ainda quis que eu fosse com todo mundo e ainda quis muitas
conversas, mas minha irmã estava com asas de anjo e tudo e tinha a
madrinha altamente granfina da Bahia, de forma que eu fiquei.
Confessei às nove, faltando um pouco. Pequei logo na saída, quis
regressar, titubeei, fiz que ia mas não ia, acabei fazendo o sinal
da cruz, rezando a penitência, assistindo a missa, mas não tive
coragem de comungar, porque, na hora, eu parecia uma cabeleira
pendurada de piolhos de pecados, um aspecto péssimo. Voltei,
confessei às dez. Achei que, se corresse para o altar de Santo André
e rezasse até a hora da comunhão, ia conseguir segurar o pecado. Mas
quando fui ajoelhando no altar, veio uma onda de pensamentos de
pecado e fiquei com vontade de comer um pastel com guaraná e até
pensei que qualquer coisa eu dava para não estar ali e estar em
outro lugar comendo um, ou dois ou três pastéis com guaraná. A missa
toda eu passei pensando em comida e, quanto mais eu queria não
pensar, mais eu pensava. Não comunguei, estava cada vez mais triste.
Às onze, confessei rapidamente, ofereci minha fome a São Judas Tadeu
e rezei cinco minutos de olhos fechados, acho que sem pecar. Mas,
quando abri os olhos um minutinho, estava uma porção de moças
passando lá fora para a praia e pequei, pequei, pequei! Uma fome
enorme e uma vontade de chorar e então eu rezei todas as rezas que
sabia e me confessei às doze horas para a missa do meio-dia e, ali
ajoelhado, esperando a hora, fui sabendo que estava pecando, fui
vendo aquela fieira de pecados passando por mim e até fiquei como
que de fora, assistindo cinema. E nem me lembro como foi que eu me
levantei e fui receber a comunhão, boiando no meio de todos aqueles
pecados e, Deus me perdoe, quase tenho um engulho de arrependimento
na hora da hóstia entrar em minha boca. A fome passou e acho que
tive febre e até hoje não gosto de me lembrar disso, mas vivo me
lembrando. Até hoje, tenho certeza de que vou para o inferno. E é só
por isso que eu não quero morrer agora, porque, tirante isso, eu
queria.
Texto extraído do "Livro de histórias", Editora Nova Fronteira -
Rio de Janeiro (RJ), 1981, pág. 37.
Tudo sobre João Ubaldo Ribeiro e sua obra em
"Biografias".
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