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texto
Uma oração
Jorge Luis Borges
Minha boca pronunciou e pronunciar? milhares de vezes e nos dois idiomas que me são
íntimos, o pai-nosso, mas s?em parte o entendo. Hoje de manh? dia primeiro de julho
de 1969, quero tentar uma oração que seja pessoal, não herdada. Sei que se trata de uma
tarefa que exige uma sinceridade mais que humana. ?evidente, em primeiro lugar, que me
est?vedado pedir. Pedir que não anoiteçam meus olhos seria loucura; sei de milhares de
pessoas que vêem e que não são particularmente felizes, justas ou sábias. O processo
do tempo ?uma trama de efeitos e causas, de sorte que pedir qualquer merc? por ínfima
que seja, ?pedir que se rompa um elo dessa trama de ferro, ?pedir que j?se tenha
rompido. Ninguém merece tal milagre. Não posso suplicar que meus erros me sejam
perdoados; o perdão ?um ato alheio e s?eu posso salvar-me. O perdão purifica o
ofendido, não o ofensor, a quem quase não afeta. A liberdade de meu arbítrio ?talvez
ilusória, mas posso dar ou sonhar que dou. Posso dar a coragem, que não tenho; posso dar
a esperança, que não est?em mim; posso ensinar a vontade de aprender o que pouco sei
ou entrevejo. Quero ser lembrado menos como poeta que como amigo; que alguém repita uma
cadência de Dunbar ou de Frost ou do homem que viu ?meia-noite a árvore que sangra, a
Cruz, e pense que pela primeira vez a ouviu de meus lábios. O restante não me importa;
espero que o esquecimento não demore. Desconhecemos os desígnios do universo, mas
sabemos que raciocinar com lucidez e agir com justiça ?ajudar esses desígnios, que
não nos serão revelados.
Quero morrer completamente; quero morrer com este companheiro, meu corpo.
Jorge Luis Borges nasceu em 1899 na cidade de Buenos Aires, capital da Argentina e
faleceu em Genebra, no ano de 1986. ?considerado o maior poeta argentino de todos os
tempos e ? sem dúvida, um dos mais importantes escritores da literatura mundial.
"Seu texto ?sempre o de uma pessoa que, reconhecendo honestamente a fragilidade e
as limitações do ser humano, nos coloca diante de reflexões nas quais, com
freqüência, est?presente o nosso próprio destino." (Miguel A. Paladino).
Algumas obras do autor:
- Fervor de Buenos Aires
- Lua de frente
- Inquisições (renegado pelo autor)
- O Aleph
- Ficções
- História Universal da infâmia
- O informe de Brodie
- O livro de areia
- O livro dos seres imaginários
- História da eternidade
- Nova antologia pessoal
- Prólogos
- Discussão
- Buda
- Sete noites
- Os conjurados
- Um ensaio autobiográfico (com Norman Thomas di Giovanni)
- Obras completas (4 volumes)
- Elogio da sombra
O poema acima foi extraído do livro "Elogio da Sombra", Editora Globo - Porto
Alegre, 2001, pág. 75 (tradução: Carlos Nejar e Alfredo Jacques; revisão da
tradução: Maria Carolina de Araújo e Jorge Schwartz).
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