Papai Noel no
trópico
Por Moacyr Scliar |
 |
Meu avô era aquilo que
os vencedores na batalha pela vida costumam denominar de um perdedor.
Nada do que fazia
dava certo, nada. Ainda jovem havia jogado fora a pequena fortuna que recebera de herança;
fizera um investimento maluco qualquer e perdera todo o dinheiro. A partir daí, tentou de
tudo para sobreviver; foi comerciante, foi corretor de imóveis,foi vendedor de seguros,
foi motorista ... Até a astrologia experimentou,mas teve de encerrar a carreira depois
que uma cliente, indignada com suas previsões erradas, deu-lhe uns tapas em plena rua. De
desastre em desastre os anos iam passando; mesmo sem dinheiro, ele casou. Com a mulher
ideal, aliás: minha avó, Isabel, era de uma paciência admirável, e encarava com bom
humor as extravagâncias e os insucessos do marido. Tiveram oito filhos porque meu avô,
além de tudo, considerava-se um patriarca e olhava com satisfação a sua tribo crescer.
A família sobrevivia, principalmente porque vovó era boa costureira e tinha numerosas
clientes na alta sociedade, o que lhe dava certa renda. Quanto a vovô, continuava
arranjando um bico aqui outro ali.
Um dia recebeu uma oferta inesperada. Um de seus muitos amigos, comerciante relativamente
próspero, convidou-o para trabalhar como Papai Noel: ficaria diante da loja, com o traje
vermelho característico, convidando os transeuntes a entrar no estabelecimento. A
princípio, vovô rejeitou a proposta, com indignação, inclusive: o que é que você
pensa que sou, posso ser pobre mas tenho minha dignidade, não vou bancar Papai Noel coisa
nenhuma. Mas aí o homem mencionou uma cifra, que não era pequena. Vovô engoliu em seco.
Era mais do que lhe tinham pago por qualquer trabalho. Um dinheiro que lhe permitiria
oferecer um Natal decente à tribo. Aceitou.
E se saiu muito bem. Porque era muito parecido com o Papai Noel: gordo, rechonchudo, faces
rubicundas. Nem precisava usar barba postiça; a bela barba, precocemente branca, tornava
desnecessário tal disfarce. Mais: seu riso era igualzinho ao Ho-ho-ho que, segundo a
lenda, é característico do Papai Noel. Só lhe faltava o trenó com as renas, porque o
resto todo ele tinha.
Esta semelhança logo o tornou conhecido. Shoppings passaram a contratá-lo, e clubes, e
também uma emissora de tevê. Orientado por um amigo, marqueteiro esperto, cobrava bons
cachês. Ao menos no fim do ano ele tinha assegurada uma fonte de renda — e um bom final
de ano para a família. A ceia de Natal (sempre realizada no dia 25, porque no dia 24 ele
trabalhava até tarde) era magnífica; e os caros presentes junto à árvore de Natal
provocavam admiração (e inveja) nos vizinhos.
Ninguém lhe perguntava se ele gostava de bancar Papai Noel; nem vovô falava a respeito.
Mas para a mulher abria seu coração: odiava aquilo. Não tanto por causa da encenação;
o que lhe incomodava era a roupa. Ridícula e, pior, quente: na cidade do Nordeste em que
viviam a temperatura nunca baixava de 25 graus. E vovô era particularmente calorento;
quando o termômetro subia, ele sofria. Normalmente andava só em mangas de camisa, de
bermuda e chinelo. Via a fantasia de Papai Noel como verdadeiro suplício. Não sei por
que tenho de vestir essa coisa, reclamava. Vovó ponderava que, na lenda, Papai Noel vinha
do Pólo Norte; teria, portanto, de usar roupas quentes.
— Mas eu sou um Papai Noel brasileiro! — bradava vovô. — Não podia fazer esse papel só
de camiseta?
Pergunta retórica. Ele sabia que uma versão tropical da roupa natalina jamais seria
aceita. O Brasil, resmungava, sempre imitou a Europa e os Estados Unidos, não será agora
que as coisas mudarão.
Vovó tentava consolá-lo como podia. Tratou, inclusive, de confeccionar para o marido uma
fantasia de Papai Noel bem mais leve, mais arejada; mas vovô, talvez por causa da
irritação, continuava suando em bicas. Este aborrecimento começou a lhe envenenar a
vida. À medida que se aproximava o fim do ano, ia ficando mais irritadiço. Na semana do
Natal ninguém podia chegar perto dele; explodia por qualquer coisa. Lá pelas tantas
vovó começou a ficar preocupada. Vovô já era um homem idoso, beirava os setenta, e a
sua saúde não era das melhores; ela temia que aquilo acabasse prejudicando o homem.
Chegou a sugerir que ele parasse de vez; afinal, tanta gente se aposenta, por que não
podem se aposentar as pessoas que fazem o papel de Papai Noel? Uma idéia que vovô
repelia, indignado. Não era homem de abandonar a luta.
Mas os temores de vovó se confirmavam. Dez dias antes do Natal vovô teve um acidente
vascular cerebral. Às pressas, foi levado para o hospital. Seu estado era grave; uma
pneumonia complicava o quadro. Com febre, vovô delirava, dizia coisas sem sentido. No fim
daquela semana, melhorou, recuperou um pouco a lucidez. Olhou a mulher, reconheceu-a:
— Que dia é hoje? — perguntou, em voz fraca.
Era a véspera de Natal, mas vovó, inquieta, não sabia se lhe dizia isso ou não:
afinal, era a primeira vez que, nessa época, ele não estava cumprindo seu papel. Por fim
disse que era a noite de 24 de dezembro.
— Então o Papai Noel deve andar por aí — disse vovô. E, depois de uma pausa, continuou:
— Eu queria falar com o velhinho. Queria lhe fazer um pedido. Sem saber o que responder, e
alarmada com a estranha conversa, vovó decidiu chamar o filho mais velho
— meu pai.
Contou o que tinha sucedido, perguntou o que deveriam fazer.
Meu pai pensou um pouco. Ele era jovem, ainda, e, como vovô, tinha um temperamento
fantasioso. De modo que não hesitou:
— Se o velho quer ver o Papai Noel, verá o Papai Noel. Foi para casa, trouxe a fantasia
que vovô usava (acrescida de uma barba postiça, de algodão branco) e, pouco depois,
entrava no quarto do hospital vestido como Papai Noel. Vovô abriu os olhos, viu aquela
figura e não estranhou; pelo contrário, esboçou um débil sorriso.
— Eu sabia que você viria, meu amigo. Tenho um pedido a lhe fazer.
Meu pai limitou-se a acenar com a cabeça: tinha medo de que vovô o identificasse pela
voz, se disse qualquer coisa. Mas aparentemente o ancião achava que estava falando com o
Papai Noel. Soerguendo-se a custo, fez o seu pedido:
— Eu não quero ser mais o Papai Noel, amigo. Ouviu?
Não quero ser mais o Papai Noel. Não agüento aquela roupa, sabe? Não agüento. Você,
que é o verdadeiro Papai Noel, ficará no meu lugar para sempre. As pessoas gostarão
disso. E eu poderei morrer em paz.
Calou-se, exausto, deixou-se cair sobre os travesseiros. Vovó chorava baixinho; papai a
custo continha o pranto. Mas tinha de levar a encenação até o fim, e assim fez para
vovô um sinal de positivo, apertou-lhe a mão e saiu.
A melhora de vovô revelou-se enganosa. Ele voltou a piorar e uma semana depois faleceu.
A consternação foi geral. O velho era conhecido e estimado em toda a cidade e os
jornais anunciaram o seu falecimento. O Natal não será mais o mesmo, dizia uma das
notícias. Outra: Papai Noel nos deixou.
Aos poucos, a vida foi voltando ao normal. Vovó passou a morar com uma filha,
professora. Sentia muita falta do marido, e sempre falava nele, mas acabou se
resignando. Parecia que, daí em diante, vovô seria apenas uma lembrança.
E aí, a surpresa. Em fins de novembro do ano seguinte papai foi procurado por um grupo de
lojistas. Queriam que ele se tornasse Papai Noel.
O pedido tinha fundamento. Papai era parecidíssimo com vovô, grande e gordo como ele. E
tinha o mesmo vozeirão, o mesmo riso em Ho-ho-ho. Ou seja, era a figura talhada para
o papel. Esse tipo de sucessão, aliás, não era excepcional. O cargo de Rei Momo do
Carnaval estava há décadas com uma mesma família — uma família de gordinhos
carnavalescos. E o cachê continuava polpudo. Detalhe importante: papai, como vovô,
nunca tivera emprego fixo. Mamãe, que, à semelhança de vovó, era uma mulher prática
(e sabia o esforço que lhe custava manter a casa com orçamento apertado), disse que
ele tinha de aceitar. Papai aceitou. E foi um sucesso. A cidade toda se comoveu: as
pessoas choravam ao vê-lo na mesma roupa de vovô.
Agora, já faz vinte anos que ele é Papai Noel. Eu era um menininho então, tornei-me
homem (e, seguindo a tradição familiar, não tenho emprego fixo; sou músico, mas
preciso lutar muito para ganhar algum dinheirinho). O tempo passou e, o tempo passando,
papai foi ficando cada vez mais parecido com vovô. Ele já nem precisa usar barba
postiça; a sua própria barba quebra o galho, embora não esteja ainda inteiramente
branca.
Como vovô, papai foi progressivamente detestando a tarefa de bancar Papai Noel. E pela
mesma razão: a roupa é quente demais. Queixa-se, mas vai em frente. A fantasia das
crianças é mais importante que meu desconforto, diz. Uma frase que, de algum modo,
me serve como lição de vida. Papai Noel não é aquele que dá presentes, é aquele que
traz alegria e conforto. Pensarei nisto quando chegar a minha vez de vestir a velha
roupa vermelha, quando chegar a minha vez de anunciar a todos o Natal. Será uma
experiência estranha. Mas irei em frente. Embora já esteja até sentindo o calor.
Texto extraído da "revista
e", editada pelo SESC - São Paulo (SP), em dezembro de 2003, nº 06, ano 10.
Conheça a vida e a obra de Moacyr Scliar na página
"Biografias".
|