Era o bonde Engenho de Dentro, ali na Praça Quinze. Vinha cheio, mas como diz, empurrando
sempre encaixa. O que provou ser otimismo, porque talvez encaixasse metade ou um quarto de
pessoa magra, e a alentada senhora que se guindou ao alto estribo e enfrentou a plataforma
traseira junto com um bombeiro e outros amáveis soldados, dela talvez coubesse um oitavo.
Assim mesmo, e isso prova bem a favor da elasticidade dos corpos gordos, ela conseguiu se
insinuar, ou antes, encaixar. E tratava de acomodar-se gingando os ombros e os quadris ?
direita e ?esquerda, quando o bonde parou em outro poste, o soldado repetiu o tal slogan
do encaixe, e foi subindo logo quem! uma baiana dos seus noventa quilos, e
mais uma bolsa que continha o fogareiro, a lata dos doces, o banquinho e o tabuleiro. E
aquela baiana pesava os seus noventa quilos mas era nua, com licença da palavra, pois com
tanta saia engomada e mais os balangandãs, chegava mesmo era aos cem. E esqueci de dizer
que junto com ela ainda vinha uma cunhãzinha esperta que era um saci, que se insinuou
pelas pernas do pessoal e acabou cavando um lugarzinho sentada, na beirinha do banco, ao
lado de uma moça carregada de embrulhos e que assim mesmo teve o coração de arrumar a
garota. Também o diabo da pequena conquistava qualquer um, com aquele olho preto
enviesado, o riso largo de dente na muda.
Esqueci de falar que tudo isso se passava no carro-motor. No reboque, atrás, a confusão
parecia maior. Muita gente pendurada entre um carro e outro, e havia um crioulo de bigode
?Stalin, muito distinto, tinha cara de dirigente no Ministério do Trabalho, que muito
sub-repticiamente viajava sobre o pino de ligação entre os dois carros ou, para dizer
melhor, com um p?na sapata do carro-motor e o outro na sapata do reboque. E quando o
condutor aparecia para cobrar a passagem, se era o condutor da frente ele punha os dois
pés no reboque, e se era o condutor do reboque que vinha com o "faz favor" ele
então executava o vice-versa. Sei que não pagou passagem a nenhum dos dois e devia fazer
aquilo por esporte; não tinha cara de quem precisa se sujar por cinqüenta centavos;
esporte, aliás, que todo o mundo aprova e aprecia, pois quem ?que não gosta de ver se
tirar um pouco de sangue ?Light? E a?o bonde andou um bom pedaço sem que ninguém
mais atacasse a plataforma. A turma que chegava, ocupava-se agora em guarnecer os
balaústres, formando com os pingentes uma superestrutura decorativa. Mas, alcançando-se
o abrigo defronte ?Central, quase chegou a haver pânico. Porque no momento em que a
multidão da calçada assaltava o veículo, a baiana quis descer, e não era façanha
somenos desalojar aquela massa da pressão onde se encastoara, sem falar na pressão de
baixo para cima feita pelos que tentavam subir, contra quem pretendia descer. Mas afinal
j?a baiana aterrissara na calçada e o vácuo por ela deixado era instantaneamente
ocupado com uma violência de sorvedouro, o condutor tocara o seu tintim de partida,
quando ressoaram uns gritos agudos cortando o ar abafado. Era o pequeno saci de olhos
pretos a clamar que o povo subindo não a deixara descer. E a tensão geral explodiu em
cólera e ternura, e todo o mundo tocava a campainha, alguns confundiam, puxavam a corda
do marcador de passagens, o condutor vendo isso pôs-se a imprecar em puro linguajar da
Mouraria, uma voz berrava: j?se viu que brutalidade, impedir a criança de
descer; a baiana, em terra, chamava a filha com voz macia, o motorneiro, para ajudar e
mostrar que não tinha nada com aquilo, desandou a tocar aquela espécie de sino que fica
embaixo do p?dele. E enquanto os passageiros compassivos desembarcavam a garota, um
senhor, que vinha em p?no meio dos bancos, pôs-se a declamar que era assim mesmo, que
motorneiro, condutor e fiscal, em vez de se aliarem com o povo, não passavam de uns
lacaios da Light, mas quando chegasse na hora de pedir aumento de ordenado haviam de
querer que a população ajudasse com aumento nas passagens. O povo ?que ?sempre o
sacrificado. E o condutor a?se enraiveceu também, e começou a convidar o homem para a
beira da calçada, e o senhor disse que não ia porque não se metia com estrangeiros, e
um engraçadinho deu sinal de partida e o motorneiro (que j?estava por demais chateado)
partiu mesmo, deixando o condutor em terra, vociferando; s?foi dar pela falta quando
chegou com o carro bem defronte do sinal; parou então, e enquanto o condutor corria o
guarda começou a apitar, que o bonde tinha parado no meio da luz verde aberta para os
carros em direção contrária; parecia o dia de juízo, o bonde parado, os automóveis
buzinando, o guarda apitando e sacudindo os braços, o pessoal do bonde rindo que era ver
uns demônios. Afinal o bonde partiu, tudo pareceu acalmar um pouco, mas aquele senhor em
p?que xingara os pobres empregados da Light de lacaios do polvo canadense mostrou que
era homem afeito a comícios, não se dava de uma interrupção tumultuosa. Estava
acostumado a falar at?em meio da fuzilaria, assim que ele disse. E que isso tudo
acontecia porque o Governo promete mas não cumpre o dispositivo constitucional
sim, meus senhores, constitucional! da mudança da capital da República. Imagine
que delícia o Rio ficar livre de toda a laia dos burocratas, dos automóveis dos
políticos e dos políticos propriamente ditos. Imagine, o Getúlio em Goiás e com ele a
alcatéia dos lobos, os cardumes de tubarões, os rebanhos de carneiros! Isso aqui ficava
mesmo um céu aberto. Pelo menos um milhão de pessoas iria embora, e que maravilha o Rio
com um milhão de vagas nos transportes, um milhão de vagas nas residências, um milhão
de bocas a menos, para comer o nosso mísero abastecimento! As favelas se acabam
automaticamente, o arroz baixa a quatro cruzeiros! Saem a Câmara e o Senado, e os
Ministérios com todas as suas marias candelárias. Pensando nos ministérios ser?
apenas um milhão de gente que nos deixa? Calculando por baixo, talvez saia mais de um
milhão! O que vir?em muito boa hora, pois no Rio sobram uns dois milhões!
E a?o bonde inteiro aplaudiu, cada qual s?pensava na vaga a seu lado. E, se aquele
bonde fosse maior, talvez nesse dia, no Rio de Janeiro, houvesse uma revolução. Talvez o
povo do Rio de Janeiro desse ordem de despejo para o seu Governo, lhe apanhasse os
trastes, lhe apontasse a estrada, que ?larga e vai longe. Mas, feliz ou infelizmente, o
bonde era pequeno e, apesar de conter tanta gente, não dava nem para um bochincho. E o
Governo, pensando bem, também ?de carne como nós e s?um coração de ferro
tem coragem de deixar este Rio, assim mesmo apertado, superlotado, sem comida, sem
transporte, sem luz e sem água. Como disse um paraíba que vinha junto com o soldado:
Qual, se no céu faltasse água ou luz, por isso os anjos haveriam de se largar de
l? Céu ?céu, de qualquer jeito...
(Rio de Janeiro, março 1953).
Texto extraído do livro O Melhor da Crônica Brasileira 1, Jos?
Olympio Editora Rio de Janeiro, 1997, pág. 53.
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