Último
texto
Ressaca
Herman Lima
A Rodolfo Teófilo
Quando a mulher fugiu para Pernambuco, com uma praça do 49, o velho Manuel Lucas, pobre
jangadeiro, que a idade não deixava ir mais à pesca, foi morar com a filha pequena, a
Rosa, num casebre abandonado, além de Mucuripe, quase ao pé do farol.
Em torno da cabana, estendia-se uma ponta de costa alva e deserta, onde alguns
muricizeiros vicejavam a custo; e um par de coqueiros, mesmo ao oitão da choça, abria no
ar sereno os flabelos das folhas amarelas. Logo adiante, erguia-se o morro liso e
íngreme, de uma brancura cegante, correndo paralelo ao oceano, de tal modo que o caminho
para o povoado ficava entre o cômoro e o mar, com pequena distância entre um e outro. Ao
meio deste trecho angusto, quando o morro mais avançava para as águas, negrejavam brutos
arrecifes recobertos de limo verde, escorregadio, abertos em poças de água, onde
fervilhavam mariscos e siris. Na maré cheia, investindo contra a rocha, as ondas
bloqueavam as penedias, cortavam todo caminho, de forma que, muitas vezes, tendo saído
para o arraial pela manhã, o velho à noite não podia voltar à casa. E a filha lá
ficava sozinha, ouvindo, apenas, em torno, eterna, a voz solene do mar, a bramir, a
bramir, dentro da noite. Noutros dias, ao verificar que a maré enchia, ele apressava-se
em regressar à choça, quando já as ondas atingiam o fragoedo. Todos, então, lhe abriam
os olhos, mostravam-lhe o perigo a que se expunha: "Olhe que o mar não é
brinquedo, seu Manuel!" Ele, porém, em sua teimosia de velho, fazia um momo,
resmungava: "Ora, eu conheço o mar, e ele me conhece.'' E seguia. Os
outros davam de ombros, prenunciavam desgraças:
"Diabo de velho teimoso! Qualquer dia as ondas o levavam!" E esse
augúrio nefasto foi crescendo, avultava já como uma sentença irrevogável. Mais dia,
menos dia, contavam deixar de vê-lo na praia, certos de ter sido arrebatado pelo mar.
Assim, quando ele tardava em aparecer no bairro, não faltava quem o procurasse, mirando,
curiosamente, o trecho de terra onde o mar estourava, espumarando. Afinal, ele surgia,
apoiado ao cacete grosso, ia por todas as casas, dando um dedo de ;prosa a um e a outro,
pedindo sempre "um vintenzinho pro gás, um rabo de peixe pra ceia", ao que
todos atendiam, pois os pescadores são generosos e francos, francos e generosos como o
mar milionário, que lhes abre sem cessar o seio fecundo.
À tarde, após correr todo o arraial, Manuel endireitava para a praia, quando aportavam
as jangadas.
O crepúsculo de ouro e sangue resplendorava ao poente. O mar glauco e agitado erguia
ondas rugidoras, que rebentavam, num espumejo branco e estrondoso. Pela redondeza, havia
um tumulto alvoroçado, um grupo envolvia os pescadores desembarcados. Um deles, as roupas
tintas de murici, vermelhas e grossas como talhadas em couro de capoeiro, o chapéu de
palha sobre os olhos, apartava o peixe em lotes, conforme os "sinais". Em
seguida, o dizimeiro avaliava a carga, anotando cifras a lápis, num papel dobrado sobre a
coxa. Meninos maltrapilhos e sujos andavam em roda, viramexendo, às risotas. O velho
Manuel, então, achegava-se dificilmente, pedia lamuriento: "João, me dá um
peixinho pra janta...'' E, tomando nas mãos as biquaras ou os cangulos que o outro
lhe jogava, guardava tudo, pressuroso, no uru, num jeito de avaro, a tossir um
"Deus lhe pague".
Entanto, outras jangadas acostavam ainda, a vela panda e molhada, abicando ao sabor do
vento. Chegavam assim, vencendo a onda empolada, a Milagrosa, de "seu" Lúcio, a
Santa Maria, do Raimundo Marinheiro, a Flor do Mar, do Gonçalo Alves, a do José Batista,
que tinha por emblema o sol. A pouca distância da praia, um dos tripulantes saltava
abaixo, com água pelas coxas, puxava o barco por um cabo reteso, preso aos caçadores. A
vaga investia furente, entrava pelo samburá dos peixes, alagava o bote, punha-o de lado
sobre a areia, enquanto o homem, aos arrancos, auxiliado pelos outros, que impeliam a
embarcação pela popa, arrastava-a para o seco, onde então a empurravam sobre rolos de
madeira num poderoso esforço de músculos.
Por fim, a noite caía rapidamente, quando o velho endireitava para a casa. O céu tomava
agora um tom de pérola, no ocaso broslado ainda de ouro. O mar azulecia, opalescente,
espalmava sempre na praia ondas escúmeas. Longe, na cidade, defronte brilhavam luzes. A
almenara rubra do farol, no outro lado, fulgia a intercadências, riscando um listão de
fogo nas vagas. De cócoras na areia, jangadeiros salgavam a pescaria. O rumor da gentalha
esmorecia, aos poucos. Porcos fossavam a terra, à cata de guelras de peixe, abandonadas.
E os casebres do lugarejo, pequenos e baixos, cheios de luz, tinham um ar pinturesco de
presepe.
Entretanto, corriam os meses, correram os anos, a filha do pescador ia crescendo, fez-se
moça, por fim, uma caboclinha linda a valer. Sozinha, como vivia, naquele deserto fulvo,
sob amplos céus infinitos, ao pé do mar infinito, a vida passava para ela eternamente
igual. Seu único prazer era andar de corrida sobre as rochas da praia, em cabeção, os
braços roliços de fora, o colo trigueiro à vista, armando arapucas aos pássaros pela
aba do morro, perseguindo maçaricos à beira da água, pescando siris entre as pedras. De
,pé, às vezes, sobre as dunas móveis, quedava-se, hirta, os braços cruzados sobre as
seios rijos, o olhar perdido ao longe, na linha do horizonte, onde passava, lento, o
perfil negro de um paquete, a golfar do bojo penachos densos de fumo. Outras vezes, eram
as velas brancas das jangadas ou das barcaças costeiras, que a prendiam assim, horas sem
conta, a mirá-las, o sentido, alheio, a pervagar, além, até que se apagassem na
distância, como asas de aves marinhas, que eram. Que desejos de aventura não lhe enchiam
então a mente incandescida, a sonhar, a sonhar, com veleiros rápidos, que a
levassem, um dia, assim, docemente, por sobre a esteira verde do mar, por sob a chuva de
ouro do sol, para as longes terras encantadas!
O sol da praia, brunindo-lhe as carnes, dera-lhe às faces um rosado vivaz de jambo
maduro. A boca sadia, acostumada a beber a largos sorvos o ar lavado e forte do oceano,
tinha o rubor e a frescura de um caju escarlate. Os cabelos negros, luzidios e fartos,
desnastrados pelos ventos do largo, faziam uma juba de azeviche àquela ferazinha das
dunas. A espuma das maretas morava-lhe dentro da boca, na fieira de dentes magníficos. E
os olhos de ônix, esses, tinham o fulgor duro das refrações da lua, quando o
plenilúnio acende relâmpagos de prata na face torva dos penedos, ou dança, à toa,
perdido, no revérbero das vagas. Quando ela nadava, era cheia de afoiteza, para ir até
muito além do ponto onde as ondas arrebentavam, a roncar. Não temia as traições do
abismo, os tubarões famintos que navegam pela costa, as penedias submersas, os
assomos das ressacas, os remoinhos furiosos. Seus braços rijos de ondina os não trocara
pelos de qualquer marujo. E as pernas ágeis, que seguiam de perto os siris ariscos, eram
velozes como as dos maçaricos. Assim, açoitado pelos ventos livres, mordido pelo
sol violento, beijado pelo mar inquieto, seu corpo moreno e carnudo, onde os peitos se
erguiam ameaçadores como cachopos, e o ventre virgem se arredondava, saliente, numa
promessa de fecundidade tropical, adquirira todas as curvas tentadoras das ondas
empoladas, o amavio assassino das sereias misteriosas.
Certa noite, regressando à palhoça, depois de se embriagar a tarde toda, o velho
encontrou-a deserta. Primeiramente, julgou que a filha andasse fora, pelas cercanias do
casebre. Pôs-se a chamá-la, uma vez, duas vezes, seguidamente, sem obter resposta.
Voltando à camarinha silenciosa e escura, intrigado, piscando os olhinhos turvas na
treva, passando a mão pela barba: "Qu'história é esta?"
resmungava, sem atinar com a causa daquele abandono. Foi à parede, ao fundo, e, remexendo
nas palhas, procurou a caixa de fósforos no lugar costumado. Riscou um, resguardando-o
com a mão em pala, contra o vento. A um canto, atirado contra o muro, o tamborete no qual
sempre se sentava a pequena; e o velho acocorara-se, mirando tudo com assombro, num
esforço enorme para compreender. Marchou então a buscar a lamparina de querosene, na
cozinha, acendeu-a, indo em seguida ao quarto da menina. Vendo-o também vazio, numa
grande desordem, peças de roupa jogadas por todo canto, o baú aberto, apesar da
borracheira acabou entendendo tudo, com uma praga tombou de joelhos no chão. A
mulher fugira com um soldado, a filha fugia agora sabe Deus com quem? era a
sorte! Entrou a soluçar baixinho, numa grande ternura como vida, com as idéias
baralhadas pelo álcool, como estavam. Balbuciava, como numa prece, com infinita doçura,
o nome da filha que o deixara assim, chamava-a ternamente, ternamente, como quando ela era
pequenina, e ele a sacudia nos braços, cantando o Serra, serra, serrador, para fazê-la
rir. De repente, porém, cheio de raiva surda, ergueu-se a custo, amparando-se à parede,
caminhou para fora.
A noite descera de todo, uma noite áspera e negra, sem uma estrela a luziluzir no alto. O
vento soprava, esfuziava; e o mar, adiante, arquejava, em estouros cavos, enristando
montanhas de águas pesadas, como se por seu bojo andassem a combater os plesiosáurios
ciclópicos, tal pelas noites fecundas da Gênese.
O velho deu alguns passos pelo terreiro, as pernas .perras, a cabeça à roda, desatou a
berrar pela filha, numa grande voz carregada e rouca:
Rosa! Rosa! ô Rosa!
Ninguém, porém, lhe respondia, no ermo aziago da treva. E ele pôs-se a marchar
lentamente, aos cambaleios, em direção ao povoado.
Perto, ao meio do trecho angusto, negrejavam os arrecifes, varados pelos vagalhões. A
maré cheia, formidável maré de janeiro, que já o havia assustado ao ir para a casa,
chegava agora até as abas do morro, estrondando rabiosa, como ansiando por galgar o
serro. Nos rochedos, então, era um borborijar formidoloso, uma espumarada escachoante, de
aterrar.
O ébrio, entanto, nada via, em coisa alguma atentava, seguindo sempre para a frente.
Súbito, a poucos passos diante dele, uma língua de água, como um dardo líquido vibrado
pelo oceano, estalou na areia, precipitou-se pela escarpa fronteira, descaindo após,
sobre si mesma.
O pescador quedou atônito, como se notasse pela primeira vez a ressaca estrupidante. Fez
uma careta idiota, cuspilhou para o mar:
Uai, diabo! A modo que tu também bebeu? Riu, num riso muito engrolado, que
lhe tomou o fôlego. Ficou um momento a tossir, as mãos ao peito, sorvendo o ar. Por fim
serenou, já próximo ao farilhão do cotovelo, a custo trepou por ele a fora.
A lado, numa batalha infrene, as ondas se atiravam de encontro à rocha, e volviam, num
retumbo possante. Por vezes, subiam até a crista do penedo, coroados de espuma, abalavam
por ele acima, numa estralada de garrancharias rompidas.
Perdido na treva espessa, bloqueado pelo temporal, o homem, pávido, já meio livre do
álcool, ia aos tropelões, aos saltos, ora agachado, ora erguido, passava de um penhasco
a outro, adiante marinhava por uma fraga abrupta. E, sempre, sem uma trégua, o mar
bramante atrás dele, na frente dele, embaixo, aos lados, por toda parte, num assédio
acirrado, encharcando-o de água, espocando em uivos, berrando a fúria portentosa de seus
anseios revéis. Afinal, o velho parou, não podia continuar, o caminho, adiante,
estava invadido, chegava até ele o reboar dos vagalhões passando sobre a rocha, indo
estourar contra o areal, embaixo. Quis retroceder, alapardou-se, e, as mãos num ângulo,
os pés noutro, saltou do cachopo a que se grimpara com enorme sacrifício.
Por um momento o mar pareceu acalmado, branco de espuma, por um momento só.
Manuel estacou, cofiando a barbuna desgrenhada e úmida, outra vez atarantado, quase em
choro. Impossível ir também por esse lado, o mar cortara-lhe aí a retirada. E ei-lo,
pois, inteiramente cercado, olhando em volta, numa atonia desesperadora.
Mas, de repente, um vagalhão estupendo, alto e negro como a muralha de um forte,
ergueu-se-lhe em frente, a poucos passos.
O pobre mirou-o aterrado, numa alucinação de pavor tremendo, forcejando por galgar
novamente o penhasco de onde descera; e, sem sentir, numa voz estrangulada, em que foi
todo o seu supremo desespero, berrou desvairado:
Vadiação! Olhe isso!...
Já, entretanto, a vaga estrondara desfeita, na raiz do fragoedo. Em torno, embaixo,
remoinhou um vortilhar revolto de massas líquidas, bojadas, ferventes, espumejosas; e,
aos gonfalões, aos bramidos, baralhadas, numa tropeada de corcéis furentes, as ondas
jogaram-se para o alto, lavaram o penedo a que o homem subira, derrubaram-no. De roldão,
levaram-no pelo penhasco a fora, onde o atiraram de encontro à duna fronteiriça; e, no
mesmo turbilhão invencível, volveram, rebolando o ébrio como uma coisa morta
rasgando-lhe as carnes contra as puas de pedra, repuxaram-no para o mar.
Manuel não dera um grito, não fizera um gesto, nele tudo cessou ao atingi-lo a vaga; e,
morto já, rolou pela penedia a fora, tombou sobre o saibro rijo, sumindo enfim no
boqueirão do inferno, aberto embaixo dele.
Herman Lima nasceu no dia 11 de maio de 1897, na cidade de Fortaleza (CE).
Autodidata, fez apenas o curso primário. Ainda jovem interessa-se pelo desenho, tendo
alguns deles publicados em O Malho e na revista Fon-Fon, e,
também, três caricaturas em capas de O Tico-Tico. Em 1915, começa a
escrever contos, sendo que alguns foram publicados na citada Fon-Fon e na
Revista do Brasil, em São Paulo. Depois de ter trabalhado em cidades do interior do
Ceará, é transferido para Salvador (BA) onde ingressa na Faculdade de Medicina. Em 1924,
publica Tigipió, de contos regionais do Ceará, tendo sido agraciado com o
Prêmio Academia Brasileira de Letras.
Forma-se em medicina e vai clinicar no interior da Bahia, na região de Lavras
Diamantinas, em Lençóis. Vem morar no Rio de Janeiro, em 1931, e no ano seguinte publica
o romance Garimpos, que posteriormente (1939) foi traduzido para o espanhol
por Benjamin de Garay. Casa-se com Annette Cathalá Loureiro, com quem tem sete filhos, em
1933. É nomeado auxiliar de gabinete do Presidente Getúlio Vargas, ocupando-se de sua
correspondência particular. Muda-se para Londres, Inglaterra, em 1937, após ter sido
designado para a Delegacia do Tesouro Brasileiro, naquela cidade. Em 1940, retorna ao Rio
de Janeiro e, no ano seguinte, publica Na Ilha de John Bull, com impressões sobre
aquele país. Outros céus, outros mares é publicado em 1942, também
ganhador do Prêmio Academia Brasileira de Letras. Faz traduções de diversos textos de
autores estrangeiros. Durante sua permanência na Europa voltara a se interessar pelas
artes plásticas e, principalmente, pela caricatura, ao tomar contato com as revistas
especializadas francesas e inglesas. Voltando para o Brasil, em 1945 começa e estudar e
pesquisar o desenho satírico no nosso país, publicando então inúmeros trabalhos sobre
este assunto em jornais e revistas e três álbuns ilustrados: Rui e a
caricatura (1949), J. Carlos (1950) e Roteiro da Bahia
(1953). Trabalha na Biblioteca Nacional, em 1954, na Divisão de Obras Raras, onde conhece
o precioso acervo dos periódicos brasileiros ilustrados. Em 1961, publica Domingos
Olímpio. Em 1963, após 20 anos de trabalho exaustivo de pesquisa, publica
História da Caricatura no Brasil, em 4 volumes, tendo recebido os prêmios
Fernando Chinaglia (melhor livro do ano), Centro Cultural Brasil-Israel de S. Paulo
(melhor ensaio do triênio 1960-1963), Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro (melhor
ensaio do ano). Nos anos seguintes publica: Poeira do Tempo (1967);
Olegário Mariano (1968), e Afonso Arinos (1970). É agraciado com
a Medalha de Ouro José de Alencar, do Governo do Ceará, em 1974. No ano seguinte, recebe
o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra.
Morre, no Rio de Janeiro, no dia 21 de junho de 1981.
(Dados coletados no folheto Outros céus,
outros mares - Exposição comemorativa do centenário de Herman Lima, Edições
Casa de Rui Barbosa / Ministério da Cultura Rio de Janeiro, 1997.)
Texto extraído do livro Tigipió, Livraria José Olympio Editora
Rio de Janeiro, 1975, pág. 105.
|