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O Day After do
carioca (Ou: O dia em
que o Rio de Janeiro derreteu)
Carlos Eduardo Novaes
Aparentemente aquele dia amanheceu igual a todos os outros do mês de janeiro. Céu azul,
lavado, um sol forte e musculoso ainda se espreguiçando, uma promessa de calor. Manhã
sob medida para turistas, estudantes em férias e desempregados. O Rio, quando quer, sabe
como nenhuma outra cidade se enfeitar para o verão. D. Odete Araújo abriu a janela de
sua casinha em Bangu e girou a cabeça como se tentando perscrutar o tempo. Viu um
cidadão parado na calçada segurando um cigarro. A fumaça do cigarro subia em linha
reta, parecia traçada a régua. Não havia a mais leve brisa no ar. D. Odete respirou
fundo, passou as costas da mão na testa gotejante e comentou com a vizinha:
Acho que hoje chegaremos aos 45 graus.
Os moradores de Bangu entendem mais do que todos de altas temperaturas. A vizinha deu de
ombros. Um grau a mais ou a menos não faz diferença neste inferno suburbano. Na
véspera, os termômetros de Bangu acusaram 44.8 graus, quebrando os recordes dos anos de
84, 85, 86 e 87. D. Odete comentou num tom cabalístico que aquele era o 13º dia
consecutivo que o Rio se debatia com uma febre de 40 graus.
No Centro da cidade, um movimento típico das manhãs de verão. As pessoas procurando as
sombras, procurando os bares, procurando diminuir o ritmo. Nada de anormal. O contínuo
Ademar Ferreira, porém, percebeu o termômetro digital, que uma hora antes acusava 43
graus, agora marcando 48. O amigo, com quem conversava numa esquina da Avenida Rio Branco,
disse que os termômetros estavam de miolo mole. Ontem vira um marcando 54 graus. Ademar
continuou conversando, tornou a olhar o termômetro: 49 graus. Notou certa inquietação
no ar. Os transeuntes se mexiam mais, tiravam o paletó, afrouxavam a gravata: 50 graus.
Outras pessoas começaram a perceber a escalada dos termômetros. O calor aumentava: 51
graus. Um grupo preocupado se reuniu em torno de um orelhão e ligou para o
Serviço de Meteorologia. O que está acontecendo? Os cientistas admitiam que a
temperatura subia. vertiginosa, mas desconheciam as razões. Estavam acompanhando uma
frente fria encalhada na Patagônia.
As pessoas se aglomeravam diante dos termômetros como se acompanhassem o movimento de
apostas no Jóquei: 53 graus. As expressões revelavam medo e tensão. O calor tornava-se
escaldante. Era como se tivessem ligado o forno da Rio Branco: 55 graus. Não dava mais
para ficar exposto ao sol. As pessoas procuraram proteção embaixo das marquises. Muitas,
nervosas, se refugiavam em lojas e escritórios com ar condicionado: 56 graus. Um bando de
honrados cidadãos invadiu uma loja de eletrodomésticos:
Liguem os ventiladores, pelo amor de Deus! Infelizmente vendemos todos
respondeu o vendedor, torcendo o lenço empapado de suor.
Na Zona Sul o pânico se alastrava como um rastilho de pólvora. Edevaldo Santos, vendedor
de picolés na praia, notou que algo estranho acontecia quando abriu a caixa de isopor e
viu os palitos boiando num caldo de sorvete: 60 graus. Não dava mais para atravessar a
areia quente. Quem ficou na praia já não podia sair. Dois helicópteros procuravam
transportar os banhistas. Primeiro, velhos e crianças! A praia, como a cidade, já estava
sob o império do caos, apesar das rádios e televisões pedirem calma à população. A
corda que pendia dos helicópteros era disputada a tapa: 65 graus. Faltava ar, a garganta
secava, o corpo parecia incandescente. A estudante Luísa Coelho lembrou-se de Joana
D'Arc. Teve início a invasão de bares, restaurantes, supermercados. Todos corriam às
prateleiras de bebidas. Água, refrigerantes, cerveja, vinho, champanhe, qualquer
líquido. Tinha gente bebendo Pinho-Sol.
O trânsito enlouqueceu de vez. Os motoristas abandonavam seus carros nos
congestionamentos. Os ônibus eram largados em qualquer lugar. Os veículos
transformavam-se em fornos crematórios: 74 graus. Os pneus começaram a derreter. Nas
ruas as pessoas iam se desfazendo das roupas. Vários executivos foram vistos se
esgueirando pelos cantos, de cueca, meias e pasta. Começou a invasão dos apartamentos
com ar condicionado. Eles viraram uma espécie de abrigo nuclear. Só na minha sala havia
67 pessoas se empurrando para botar a cara na frente do aparelho: 80 graus. De repente
ouviu-se um ruído e logo o silêncio do ar-condicionado. A cidade ficara sem energia. O
calor derreteu os cabos da Light. O sol esquentava os vidros e o concreto dos prédios.
Era insuportável o calor nos apartamentos. A população desesperada saiu às ruas à
cata de sombras. Num poste em Madureira havia 23 pessoas espremidas e perfiladas ao longo
de sua tira de sombra: 84 graus!
Os carros dos Bombeiros circulavam pelas ruas com um restinho de água molhando a
população. "Aqui, aqui! Joga aqui antes que eu pegue fogo!" Os chafarizes da
cidade. estavam mais cheios do que trem da Central. Milhares de. pessoas mergulhavam na
Lagoa Rodrigo dA Freitas. Só que esta, como as outras lagoas da cidade, secava
rapidamente. As poucas matas pegavam fogo. As ruas de terra rachavam ao melhor estilo
nordestino. O asfalto começou a borbulhar. Ploft! A cidade se transformava num
caldeirão: 88 graus. No cais do porto os marinheiros se atiravam do convés como se os
navios estivessem naufragando. No Santos Dumont um avião da Ponte-Aérea, ao invés de
levantar vôo, embicou dentro d'água. O piloto foi aplaudidíssimo pelos passageiros.
A temperatura estava em torno dos 94 graus. No Sumaré as antenas das emissoras de
televisão adernavam, desmaiando lentamente. O Pão de Açúcar começou a derreter como
um sorvete de casquinha. Uma mancha escura se espalhava pelo mar. No meio, boiando, o
bondinho com turistas americanos fotografando tudo. Outros morros também derretiam. O
Dois Irmãos, para surpresa geral, entrou em erupção. A estátua de Cristo tinha
desaparecido do alto do Corcovado. Dizem que, quando o morro começou a desmanchar, Ele
saiu voando com seus braços abertos. Todo mundo já estava tendo visões e alucinações.
Nas calçadas da Visconde de Pirajá lado da sombra as pessoas se arrastavam
aos gritos de "água, água". Eram inúmeras as miragens. O pipoqueiro Manuel de
Souza jura que viu as Sete Quedas na Praça Nossa Senhora da Paz.
As 17h12min, por fim, o sol começou a perder a força. As pessoas, ainda desconfiadas,
foram saindo de dentro das geladeiras, freezers, frigoríficos. Nas câmaras
frigoríficas da Cibrazem contou-se ... havia 12 mil 344 pessoas. Uma
sensação de forno quente pairava sobre o Rio. Somente à meia-noite os termômetros
voltaram ao normal: 40 graus. Terminara o efeito-estufa, deixando um rastro de dor e
destruição. Não havia uma única gota d'água na cidade. Fomos dormir e no Day After,
como não havia trabalho, saímos todos para a praia. Pois creiam: no meio do comércio de
sanduíches naturais, chapéus, cocadas, óleo para bronzear, o diabo, já tinha nego
vendendo um aparelhozinho para dessalinizar a água do mar.
Carlos Eduardo de Agostini Novaes nasceu na cidade do Rio de Janeiro
(RJ) em 1940. Romancista, dramaturgo, contista e, durante anos cronista no Jornal do
Brasil, em 1958 mudou-se para Salvador (BA), onde permaneceu por dez anos. Estudou Direito
na Universidade Federal da Bahia e, para seu sustento, exerceu variadas atividades
profissionais, como agente rodoviário, dono de dedetizadora e sócio de uma fábrica de
sorvete. De volta ao Rio de Janeiro, em 1969, inicia a atividade de cronista no jornal
Última Hora. Em 1972, trabalha no Jornal do Brasil - JB, criando prognósticos
bem-humorados para a Loteria Esportiva e passando depois a cronista. Assim nasce seu
primeiro livro, "O Caos Nosso de Cada Dia", uma reunião de crônicas escritas
para o JB, publicado em 1974. O trabalho nesse jornal se estende por 13 anos e dá origem
à maior parte de seus livros. No teatro, além de atuar, escrever e dirigir várias
peças, é presidente da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais - Sbat e vice-presidente
da Federação Internacional de Sociedades de Autores Dramáticos - Fedra. Seus livros
abordam, entre outros, temas ligados à política brasileira, ao cotidiano urbano, à vida
conjugal e ao universo adolescente, sempre de forma crítica e bem-humorada. É diretor da
Casa do Riso, no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro, um teatro dedicado exclusivamente ao
humor.
Obras publicadas
Crônica
O Caos Nosso de Cada Dia - 1974
A Travessia da Via Crucis - 1975
Os Mistérios de Aquém - 1976
O Quiabo Comunista - 1977
O Chá das Duas - 1978
O Balé Quebra-Nós - 1979
A Língua de Fora - 1979
A Cadeira do Dragão - 1980
Democracia à Vista! - 1981
Crônica de uma Brisa Eleitoral - 1983
Deus É Brasileiro? - 1984
A Travessia Americana - 1984
O Day After do Carioca - 1985
Na República do Jerimum - 1986
O Cruzado de Direita - 1987
Homem, Mulher e Cia. Ltda. - 1987
O País dos Imexíveis - 1990
A Cadeira do Dentista e Outras Crônicas - 1994
Romance
A História de Cândido Urbano Urubu - 1975
Mengo, uma Odisséia no Oriente - 1982
A Próxima Novela - 1988
Teatro
A Mulher Integral - 1975
WM, na Boca do Túnel - 1978
Confidências de um Espermatozóide Careca - 1986
Quem Votou para Presidente? - 1989
O Tiro que Mudou a História - 1991
Diálogo do Pênis - 2002
Humor
Capitalismo para Principiantes - 1983
É Dando que Se Recebe e mais
1499 Frases Tiradas da Boca da História: 1964-1994 - 1995
Sexo para Principiantes - 1996
História do Brasil para Principiantes - 1997
Cidadania para Principiantes - 2001
Infantil e juvenil
Juvenal Ouriço Repórter - 1977
Casé, o Jacaré que Anda em Pé - 1993
O Menino sem Imaginação - 1995
O Imperador da Ursa Maior - 1999
A Lágrima do Robô - 2006
Conto
O Estripador de Laranjeiras - 1983
(Fonte: Itaú Cultural - 2008)
Texto extraído do livro "O Day After do carioca", Ed. Nórdica, Rio de Janeiro
- 1985, pág. 73.
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