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Um tal menino
Caco Xavier
Ao que parece, ele atravessava a passarela sobre a Avenida Brasil bem em frente ao castelo
da Fundação Oswaldo Cruz, às cinco horas da tarde. Se tivesse visto aquele filme cyberpunk,
diria que estava simplesmente decifrando os códigos de Matrix. Mas não era
bem isso, não era bem isso.
Parado bem no meio da passarela, por um momento, sob um sol aberto graças ao horário de
verão, o menino preto e gorducho que não aparentava mais de onze anos, se tanto
olhava bem de frente para as coisas. A avenida estava engarrafada nos dois
sentidos, e uma fila interminável de ônibus e carros arrastava-se no asfalto. Muitas
pessoas caminhavam, como ele, atravessando a passarela (nos dois sentidos), dezenas
acotovelavam-se nos pontos de ônibus, abaixo, e algumas ladeavam o grande muro cinzento
rumo à Vila do João. Outras, ainda, corriam freneticamente pra lá e pra cá vendendo
refrigerantes e latinhas de cerveja, gritando e se esgueirando entre os veículos (a
maioria meninos pretos, como ele). Havia ainda cães famintos, mendigos esmolando e alguns
pássaros sobrevoando um terreno baldio. Isso tudo ele viu num relance.
"Caralho!", disse o menino, e repetiu: "caralho!" O menino, apelidado
Caco, enxergava os códigos de Matrix. Não, não me expresso bem, já disse que não é
bem assim: ele via cada ônibus e as vezes que cada ônibus havia cruzado aquele mesmo
espaço. Viu todos os carros que por ali passavam e quantas vezes cada carro já havia
passado embaixo daquela mesma passarela, e quantos carros já haviam cruzado mais de uma
vez com cada ônibus ou com cada outro carro dos que estavam ali, em outros lugares, em
outras situações. Via as pessoas dentro dos ônibus, das vans e dos carros. Via que
muitas, inúmeras delas, já haviam passado umas pelas outras, em outros lugares, em
outras situações, até mesmo trocado olhares ou palavras. Algumas se conheciam ou se
conheceram um dia, outras conheciam pessoas em comum, outras tinham a mesma profissão ou
o mesmo time de futebol, e outras ainda haviam namorado a mesma pessoa. E ele via tudo
isso não como códigos alfa-numéricos, como se poderia supor por minha tentativa de
analogia anterior, mas como um grande esquema, um diagrama mental, onde retas rápidas e
coloridas eram continuamente traçadas e retraçadas, um mapa de relações e
associações. Via pessoas que sonhavam com outras pessoas, bem próximas sem que
soubessem, e via que tal e tal e tal pessoa haviam escutado a mesma canção e visto o
mesmo filme e lido o mesmo livro. Via que uma outra adquiriu também o referido livro, mas
não o leu, e tempos depois acabou por ofertá-lo de presente a uma outra. Tal livro foi
transformado em série televisiva, e uma multidão a tinha assistido, e tudo isso ele viu,
cada pessoa que havia assistido à série, cada pessoa que havia lido o livro. Os meninos
que vendiam coca-cola roçavam as mãos nas mãos dos passageiros-fregueses, trocando uma
latinha por um real, e esse roçar de mãos era similar a todos os roçares de mão do dia
inteiro, da semana inteira, da vida inteira. Cães e meninos, mendigos e palavras,
pássaros que voam, pessoas que vêem os pássaros, pessoas que distraem-se da longa
espera pelo ônibus vendo desenhos nas nuvens. Desenhos de pássaros, cães, coelhos e
dragões. Desenhos de outras pessoas. Nuvens e pássaros, pessoas e latinhas, cães e
muros, carros e esperas, asfalto e céu, árvores e pássaros, nuvens e ônibus, livros
malditos e cães de arquelau, mendigos e sonhos. Caquinho via tudo isso como retas,
curvas, que formavam polígonos e parábolas, que apareciam e se desvaneciam, ligavam e
sobreligavam, e ainda se bi, tri, polipartiam em várias direções, como quando uma bola
de gude é lançada em cheio contra um triângulo lotado, chocando-se com
outras, espalhando bolinhas em todas as direções, que por sua vez chocam-se entre si.
Foi a imagem que veio rapidamente à mente do menino. As retas, curvas e figuras
geométricas se sucediam com velocidade absurda, sem-tempo, mapas e mais mapas de papel
transparente sendo colocados uns sobre os outros. E não eram retas nem curvas nem figuras
estáticas, mas dinâmicas, pois se moviam constantemente, retorciam-se, abriam-se e
fechavam, combinavam-se e recombinavam-se. Os carros, a rua, a passarela, o muro cinzento,
a Vila do João, o castelo mourisco e todas as pessoas e animais e coisas já não
existiam como tais, mas tinham virado pontos, pequenos pontos de partida e destino para as
retas, curvas e elipses que se interceptavam. Colisões de fótons, dança de partículas,
Shiva rebolando loucamente na Avenida Brasil, se Caco soubesse... O mapa não terminava
jamais de ser feito e refeito e refeito e jamais terminaria, se seu amigo sarará Paulo
Punheta, que há um minuto atrás tinha deixado o isopor de refrigerantes com um colega e
convencido Caquinho a ralar peito pra jogar uma pelada esperta no Rato
Molhado, não o tivesse despertado de seu instante de loucura com um puxão no
braço: "vambora, mané"!
Caco não é nada bonito, pelos padrões branquelos da classe média, mas é um humorista
nato, e diverte a meninada com as imitações de Falabella, que acabou lhe emprestando o
apelido: "Eu, um dinamarquês, louro, de olhos azuis... odeio pobre!" Nessa
tarde o menino risonho passou sério e ressabiado por baixo da roleta do 175, em direção
ao Recreio, enquanto Punheta fazia a algazarra de sempre, ocupando dois lugares, cuspindo
no chão e mexendo com as pessoas na rua. Ônibus vazio, apesar da hora, e por isso pôde
sentar-se junto à janela do lado esquerdo, pra se livrar do sol. Os diagramas mentais
não tinham sumido, nem faziam qualquer menção de sumir. O carro avançava a 80
quilômetros por hora na pista livre da Linha Amarela, mas o garoto sentia-se parado,
fixo, fincado num ponto invisível, e tudo o mais é que passava. E quanto mais tudo o
mais passava, quanto mais mapas surgiam. Ele estava parado, imóvel, e tudo passava por
ele e continuava passando. Aos poucos, já ele mesmo não se sentia imóvel: ele também
passava, enquanto tudo o mais passava. Ele colidia com as coisas, tornando-se também
retas e curvas de seu próprio esquema, e as coisas o atravessavam, e ele atravessava
todas as coisas, e desse atravessar simultâneo novas coisas surgiam, duravam frações
ínfimas de tempo e voltavam à não-existência. A dança das partículas, de novo, mas
como ele poderia saber? Como ele poderia saber do conceito holograma, onde
cada parte contém o Todo ao mesmo tempo em que o Todo contém todas as partes? Caquinho
mal terminou a segunda série!
De repente, um grande outdoor chama sua atenção como um imã, com força
gravitacional: a foto de uma mulher grávida segurando sua imensa barriga num ato de
ternura, assistência médica para a família inteira. Olhando para a imagem,
Caco viu todas as mulheres grávidas desta cidade, deste país, deste mundo. Deste tempo,
de tempos passados, de tempos futuros, de todos os tempos. Viu todos os nascimentos
(inclusive o dele próprio), todos os rostos de bebês repolhudos, todos as bocetas
abertas e todas as barrigas rasgadas. Viu vidas breves e mortes súbitas. Viu todo
nascimento acontecido e ainda por acontecer, simultaneamente acontecendo agora mesmo,
nesse exato e indefinível instante. No nascimento de bebês repolhudos viu nascimentos de
macacos, mamíferos, peixes, répteis, insetos, na terra, no céu, na água, sob a terra e
em espaços jamais imaginados, como o interior do próprio corpo humano, onde bilhões de
pequenos organismos nascem a cada milissegundo. Animais grandes e pequenos, animais que o
menino jamais chegou a supor que existissem, vida microscópica, larvas, ovos, óvulos,
flores, plantas, células. Viu nascimentos por cissiparidade, gemiparidade,
partenogênese, metagênese, neotenia e também por conjugação e fecundação. O garoto
via tudo nascendo e nascendo e nascendo para sempre e sempre nesse momento. Nesse nascer
incessante, Caco vislumbrou todas as coisas que nascem, que são formadas, que são
criadas, que ganham existência, e as vê no momento mesmo de sua entrada no Ser: todos os
livros que são escritos, no exato momento em que deixam de ser idéias esparsas na mente
do escritor ou rascunhos em cadernos amassados, todas as obras de arte que são pintadas,
esculpidas e cantadas, todas as palavras que são ditas, todos os planos que são feitos,
mapas e mais mapas e mais mapas que são realizados repetidamente, na mente, na poeira da
terra, no papel ou no computador, intenções que se tornam realidade, brinquedos
fabricados, eletrodomésticos, programas de tevê, chapéus de palha, aviões, desejos,
discursos, letra e música, fotos reveladas, idéias, muitas idéias, todo tipo de
pensamento que toma forma, tudo o que nasce, de uma maneira ou de outra, e cada coisa que
de uma vez por todas e para sempre e agora mesmo nasce.
"Caralho!", disse o menino, uma terceira vez, por falta de melhor palavra para
nomear o espanto. Punheta, dois anos mais velho que ele, o arrastou para fora do ônibus,
na hora em que o motorista sangue bom deu uma meia-trava para que os meninos pudessem
descer em frente à favela. Só pular a linha e atravessar o alambrado e lá estavam eles,
de novo em casa. Caquinho, sentindo-se um caquinho multicolorido de algum louco
caleidoscópio cósmico, corria aparentemente incólume em meio ao emaranhado de linhas e
nascimentos. Mas algo não estava bem.
Puta merda, os home! Punheta era escolado, e já podia ouvir a certa
distância os tiros esparsos, de diversos calibres. Um ouvido treinado como o do garoto
sarará podia dizer até de que arma eram disparados.
A polícia? Caquinho não se mostrava nem um pouco assustado.
Não, é briga de
faquição! Acho que são os caras do Divino!
Tu vai atravessar?
É o jeito! Se a gente ficar aqui, vamo barrá o caminho deles quando eles voltarem
vazando!
Vamo ver se dá pra chegar na quadra?
Vambora! Fica junto de mim, muleque!
Punheta, rápido como um gol do Romário, atravessou a rua larga e entrou numa viela, com
Caco logo atrás. De repente, estancaram! Por um irremediável erro de navegação,
estavam bem de frente pra briga. Era dali que vinham os tiros. "Porra, fudeu!",
gritou o menino experiente, trocando rápido de direção e tentando puxar Caquinho junto.
Mas o gorducho fixava os olhos na submetralhadora israelense do traficante de quinze anos
da facção invasora, justamente na hora em que o vapor disparava uma rajada.
O tempo congelou, e só Caco se movia. Ou, em tese, podia se mover. Ele viu vinte, trinta
balas paradas no ar, numa linha ascendente, recém-saídas do cano da arma. O desenho
parecia-se com uma hipérbole matemática, uma bala imediatamente acima e imediatamente à
frente de sua sucessora, coisa de dez centímetros. Vinte e sete balas, o menino contou,
devagar. E já não eram mais vinte e sete balas, mas uma só, todas as balas do mundo.
Todas as balas do mundo ele viu, nesse instante, disparadas simultaneamente de todas as
armas do mundo, em todos os tempos. E essas balas feriam pessoas, abriam buracos nas
carnes, nos muros, nas árvores, nas latas. Quebravam garrafas, partiam ossos, rompiam
tendões, rasgavam órgãos. Essas balas, a mesma e única bala, deixava as armas, a mesma
e única arma, empunhada por mãos assassinas, a mesma e única mão, em direção aos
alvos, o mesmo e único alvo. Balas, mãos, armas, alvos, e o ato de atirar: um único
mapa, um único ponto no mapa. Caquinho viu animais sendo despedaçados de uma vez, viu
cérebros sendo dissolvidos, músculos sendo esgarçados, olhos e bocas sendo
atravessados, medulas sendo partidas, membros sendo inutilizados, fígados, pulmões,
rins, estômagos, pâncreas, baços, intestinos sendo reduzidos a massas moles e informes
banhadas de sangue. Viu corações pararem de bater subitamente, de homens, de mulheres,
de crianças e de animais. Viu cada rosto na hora do impacto da bala, cada rosto de quem
atira, cada rosto de quem é atingido, em todos os tempos. Reconheceu pessoas importantes,
como aquele ator fortão da Globo, reconheceu alguns conhecidos seus (tanto atirando
quando sendo atingidos), e também gente de roupas estranhas, de outras épocas, de
épocas quando nem mesmo armas de fogo havia, sendo igualmente atingidas por lâminas,
paus, pedras e tudo aquilo construído para ferir, amassar, contundir, rasgar, cortar e
perfurar. Viu todos os pais de família, e ouviu todos os choros de todas as mulheres e de
todas as crianças. E reconheceu seu próprio pai, com a idade de dezenove anos, jovem
formado do movimento, sendo trespassado por uma bala (a única e a mesma) na
altura dos pulmões. Viu sua mãe e todas as mulheres de todas as vítimas, a
única e a mesma berrando e jogando-se sobre o corpo já inerte do companheiro. Viu
a si mesmo chorando e tentando correr em direção ao pai morto, com os passos vacilantes
de um quase-bebê de três anos. E, nesse momento, Caco moveu-se e moveu a boca gritando
com todas as forças:
Pára!!!
O menino sabia que havia gritado todos os páras do mundo, todos os
bastas palavra que seria a melhor escolha, caso ele dispusesse de
repertório para isso. Continuavam lá, o inamovível moleque armado, com suas vinte e
sete balas suspensas no ar. "Pára!", e tudo parou de vez. Menos os esquemas,
que se sucediam com a velocidade da luz, e agora abrangiam todo o mundo, todo o universo
até então conhecido, englobando desde as órbitas eternas das maiores entre as maiores
galáxias até as trajetórias fortuitas e brevíssimas de cada último píon. Não se
pode chamar Caco de Caco, nesse momento, porque ele estava já atravessando
indubitavelmente a fronteira do Um e do Outro, da existência individual como a
conhecemos. O menino reconhecia agora o Grande Ventre, o Três de onde provêm as dez mil
coisas. Ele saberia disso, se tivesse lido o Tao Te King, mas creio que ninguém que tenha
lido o Tao Te King pode dizer que tenha conhecido o Grande Ventre como ele agora o
conhecia, a gestação de tudo, o início de toda forma, de toda distinção. Para lá do
Três, ou além dele, ou adentro, o menino pura convenção, na falta de
definição adequada para a consciência suprapessoal que agora se instaura
definitivamente pode reconhecer os dois princípios a partir dos quais o Três é
formado: um positivo e um negativo, um masculino e um feminino, o Amor e a Discórdia,
como diziam os pré-socráticos, se Caquinho soubesse, mas nesse momento ele sabia, sim,
sabia. E esses dois não são de maneira nenhuma opostos duais, mas simbióticos,
balanceados, combinação dinâmica. E estão presentes (o menino pode ver claramente) em
todas as coisas existentes ou pré-existentes, em perfeito equilíbrio, o Um e o Dois, o
Céu e a Terra, o criativo e o receptivo. E finalmente há o Vazio, o Nada, a última
fronteira do Ser. Não há mais Caco, não há mais mundo, não há mais caleidoscópio
nem holograma, não há mais coisas, não há mais idéias, não há mais tempo, não há
mais nada. Ou melhor, só há o Nada, o caos, o acaso. Nesse, vamos chamar assim, lugar, a
analogia do código de Matrix finalmente faz sentido: não mais corpos, não mais
substâncias, mas ínfimas partículas, impensáveis ondas de energia se precipitando,
atravessando-se mutuamente, doidamente, compondo-se em associações indescritíveis para
decomporem-se logo em seguida. Mas nesse, digamos, tempo, o que será que significa
exatamente a expressão em seguida? Para lá do Vazio, o Caco que não mais
há sabe muito bem que existe um Tal em toda a sua talidade, além de todo
nome, de todo conhecimento, de toda ação, de todo ser: o não-definível,
não-nomeável, não-perceptível, não-tangível, não-cognoscível. Numa espécie de
piscadela de olho de uma consciência arcaica e fundamental, este menino que não mais há
tranquilamente sabe que em algum tempo e em algum lugar ou em todos os tempos e
lugares, simultaneamente há um menino pretinho e gorducho, ao qual todos chamam
Caco, estendido no chão atravessado por três das vinte e sete balas, ainda congeladas no
ar. Todas as mães se debruçam sobre ele, todos os amigos choram e culpam-se, todos os
meninos silenciam. Nesse momento onde não há momento o menino onde não há menino vive
sua vida onde não há vida. Ele a vive inteira e inumeráveis vezes, partindo de qualquer
ponto e evento em direção a qualquer ponto e evento, quantas vezes queira, de quantas
maneiras queira, por quantas razões queira. Nesse não-momento anterior a todo momento o
não-menino anterior a todo menino nasce e morre interminavelmente, infinitas vezes,
quantas vezes queira, de quantas maneiras queira, por quantas razões queira, no espaço
de uma inspiração e de uma expiração, ahm... so...
Caco Xavier - Carioca de 1958, jornalista
da Fundação Oswaldo Cruz do Rio de Janeiro, editor de um programa de jornalismo em
saúde pública. Ilustrador, quadrinista com formação também em artes gráficas.
Publicou quadrinhos, cartuns e ilustrações no Pasquim, na Bundas, na Mad, nas
revistas Animal, Ding-Ling, Lúcifer, Mil Perigos, Sport Gang, Front e outras. Foi
premiado por seus quadrinhos nos salões de Humor de Piracicaba, Piauí, Volta Redonda,
Porto Alegre, Jundiaí, no Salão Carioca de Humor e na Bienal Internacional de
Quadrinhos. Foi co-organizador e curador-geral da I Bienal Internacional de Quadrinhos do
Rio, em 1991. Editou as grandes entrevistas da revista Bundas e do novo Pasquim 21.
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