O Vestibular da Vida
Affonso Romano de
Sant'Anna
Um enduro sem moto, um rali sem carro, uma maratona onde, ao
invés de atletas, correm paraplégicos, cegos, presidiários, grávidas e doentes em suas
macas, esta é a imagem que nos deixa este vestibular realizado esta semana, mobilizando
centenas de milhares de jovens em todo o país.
Várias fotos mostram jovens correndo desabalados dentro de seus jeans justos e camisetas
palavrosas em direção ao portão da universidade, como se fossem dar um salto tríplice.
Como se fossem dar um salto sem vara. Como se fossem dar um salto na vida. Ao lado,
aparecem parentes incentivando o corredor-saltador, aparecem colegas gritando em torcida.
Correi, jovens, correi, que estreita é a porta que vos conduzirá à salvação! E ali
está, como São Pedro, um porteiro ou guarda, que vai bater a porta na cara do
retardatário, que chorará, implorará, arrancará os cabelos num ranger de dentes,
enquanto, saltitantes, os mais espertos pulam (ocultamente) um muro e penetram o paraíso
(ou inferno da múltipla escolha).
A Telerj declarou que teve que acordar mais de 10 mil jovens pelo despertador telefônico.
Carlinhos Gordo, o maior ladrão de carros do país, estava entre os 39 presidiários que,
no Rio, fizeram, mesmo na cadeia, o exame. Mais de trinta deficientes visuais tiveram que
tatear as 51 folhas em braile. Maria Alice Nunes teve um filho e saiu da maternidade com o
recém-nascido no colo para enfrentar o unificado. Um índio cego o guarani José
Oado, 24 anos disputa uma vaga em História (ou na história?). Andréa Paula
Machado, 17 anos, teve que interromper o exame escrito várias vezes, para o prazer oral
do bebê que, entre uma mamada e outra, voltava ao colo da avó. Dois fiscais que
transportavam as provas no caminho de Petrópolis morreram num acidente. Um estudante com
rubéola fez, num posto médico, prova ao lado de outro com catapora. Todas as idades ali
estavam representadas: Márcia Cristina da Silva, 13 anos, vejam só!, já começou a
treinar para o vestibular de Medicina em 88, e neste só achou difícil a prova de
literatura. Mas lá estava também Edgar Carvalho, 73 anos, advogado, trocando as
delícias da aposentadoria pela idéia de se tornar médico e ainda ser útil aos outros.
Por isto, discordo da jovem que o interpelou acusando-o de estar tirando a vaga de outro.
Socialmente é melhor um velho de 73 anos que qualquer dos jovens que faltaram à prova
porque dormiam, que não foram classificados porque achavam que vestibular era loto e
vivem a ociosidade daninha à custa de seus pais.
Mas, de todos os casos, impressiona mais o de Maria Regina Gonçalves, uma enfermeira de
38 anos. Vejam que estória mirabolante.
Lá vai a nossa Maria Regina. Mas não vai simplesmente. Vai grávida. Vai grávida, mas
não é uma grávida amparada pelo seu marido, mas uma grávida solteira, enfrentando o
mundo com sua barriga e coragem. No entanto, hora e meia antes do exame, em São
Cristóvão, é assaltada por três marmanjos covardes, que tomam dela os documentos, 200
mil cruzeiros, e o pior: lhe dão uma porção de safanões, num exercício de sadismo
matinal.
Maria Regina poderia depois disto voltar chorando para casa e ficar lamuriando o resto da
vida. Fez o contrário: foi em frente, embora, ao chegar no local, soubesse que uma outra
colega, também assaltada, desistira do exame. Maria Regina deu um jeito, arranjou até
cópia xerox de sua carteira de identidade, fez a prova, comprometendo-se a mostrar os
outros documentos mais tarde.
Mas, de noite, teve uma hemorragia. Pena que os ladrões não pudessem ver a cena, pois
ficariam mais felizes. O médico lhe ordena "repouso absoluto". Ela ali
"repousando", mas agoniada, porque a burocracia lhe exigia comprovações de
documentos para validar os exames. Como desgraça pouca é bobagem, quatro dias depois
morre o pai de seu namorado, daí a uns dias ela aborta e teve que ficar mesmo internada.
E vede agora, ó filhinhos e filhinhas do papai, que esbanjais vossos corpinhos sem
destino nas praias da irresponsabilidade! Maria Regina foi a primeira colocada (nota 96)
no concurso para Enfermagem e Sanitarismo. Tirou primeiro lugar e seu nome não apareceu
na lista. Ainda vai ter que provar que existe. Mas já impetrou mandado de segurança. É
claro que vai ganhar.
12.01.86
Texto extraído do livro A Mulher Madura, Editora Rocco Rio de
Janeiro, 1986, pág. 111.
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