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De como o Brasil não
resolve seus problemas
Auricélio Penteado
Há sempre duas maneiras de se resolver um problema: a maneira acertada e a maneira
do Governo. Vejamos como se resolve um problema vital para a economia brasileira, por
exemplo, o caso do incremento da cultura do xuxú.
Um médico americano descobre que o xuxú contem quantidades fabulosas das vitaminas
"x" e "u".
A imprensa, que não sabe bem para que servem as vitaminas "x" e "u"
divulga e discute o fato. "Seleções", entre uma historia de esquilo sábio e
uma passagem da vida de Houdini, publica um artigo sobre como a vitamina "x"
resolveu o problema das inundações do Mississipi e o efeito da vitamina "u" na
cura das verrugas. E pronto! Daí por diante, a vitamina "x" e a vitamina
"u" são o assunto do dia, nas entrevistas de Hamilton Nogueira na conversa em
família da Rádio Globo; nas colunas de "hiperdietética", da Helena
Sangirardi, no "Cruzeiro"; no Almanaque do Eu sei Tudo; no Digesto Econômico;
no Boletim Semanal da Associação Comercial; nos ônibus, no lotação, na praia, no
futebol e onde quer mais que haja alguém disposto a dois dedos de prosa.
Em pouco tempo o xuxú assume as proporções de salvador do mundo, redentor de todas as
mazelas, panacéia universal. A essa altura, aparece nos jornais uma noticiazinha tímida
de que um médico tcheco da Missão Rockefeller, no Hawai, está empregando nos
leprosários um tratamento pelo xuxú. Pouco depois, o Diário da Noite ou a Folha
descobre que um farmacêutico de Itapetininga (Estado de São Paulo) há muito tempo vem
curando a tuberculose com uma infusão de xuxú, arruda, guiné e mel coado.
E com essa sanção do charlatanismo, o xuxú atinge um ponto máximo de prestígio, até
mesmo nos círculos científicos.
Um italiano de Osasco e um português de Jacarepaguá iniciam a cultura do xuxú em maior
escala e ganham dinheiro, porque a essa altura o xuxú já está no mercado negro a um
conto e quinhentos a dúzia.
Alguns meses depois Vida Doméstica publica o retrato da graciosa filhinha do Sr. Giaccomo
Sparafucile, capitalista, honrado comerciante desta praça e líder do comércio varejista
de xuxú. Muitos outros italianos, turcos, judeus, alemães, fascistas, nazistas, e até
mesmo um ou outro brasileiro filho de italianos, também plantam xuxú, negociam com
xuxú, falsificam xuxú e enriquecem, para comprar "baratas Mercury" no mercado
negro, para dar gorjetas de 20 cruzeiros ao barbeiro, para comprar aqueles sapatos de
três andares que se usam com terno branco de albene e para ir chupar dentes e discutir
futebol nas "boites". A lavoura e o comércio do xuxú prospera de forma
inesperada; o Banco do Brasil abre uma "Carteira do Xuxú", para financiamento
em grande escala; a Secretaria de Agricultura de são Paulo já distribui sementes e mudas
de 825 variedades de xuxú e está, no momento, enxertando o xuxú em jaqueira e
experimentando hibridização com melancia para aumentar o tamanho do pomo.
O Rôla anuncia uma "Exposição do Xuxú" em Quitandinha e o I.D.O.R.T.
organiza a "Semana do Xuxú" e assim se concretiza, depois do sucesso
econômico, o sucesso social do xuxú. No último "Sweepstake" Sua Alteza Real,
a Princesa Przinkwski, apareceu trajando um lindo "ensemble brique" com
aplicações de xuxús.
Fazendeiros derrubam seus cafezais para plantar xuxusais; o Amaral inventa e patenteia
logo uma máquina capaz de colher trezentas toneladas de xuxú por hora; um alemão de
Santo Amaro, (ex-químico da I.G.Farben) inventa um processo de extrair Coca-Cola do
xuxú; um "engenheiro" italiano "ex-técnico da Marelli" apresenta à
imprensa as excelências do seu processo de fazer paralelepípedos de xuxú prensado;
prevê-se que, com tal maravilha, todas as estradas do Brasil venham a ser pavimentadas
com "artigo nacional" superior ao melhor concreto asfáltico. Um turco de São
Bernardo consegue aproveitar a raiz do xuxú para fiação e tecelagem, com enormes
vantagens sobre a seda italiana.
A essa altura o Observador Econômico já publicou 10 reportagens de 100 páginas cada uma
escritas pelo Dimas, sobre a lavoura xuxuseira de São Paulo e adjacências. O xuxú entra
para a casa dos milhões: - dá milhões, alimenta milhões, dá trabalho a milhões,
serve para milhões de usos. Com ele se pode fabricar: - paralelepípedos, tecidos,
goiabada Peixe, marmelada Colombo, geléia de uva, chapéus para senhoras, Parker 51 e
até mesmo doce de xuxú. Dele se extraem, como sub-produtos: - Whisky Schenley, Paraty,
Coca-Cola, Cerveja Antarctica, leite, álcool de mandioca, cafeína, teobromina, borracha
sintética, óleo de caroço de algodão, azeite Bertoli, ácido sulfúrico, Maravilha de
Humphreys, soda caustica, sabão Aristolino e âmbar gris.
Os ingleses tentam plantar xuxú na Birmânia, mas sem resultados; os holandeses o levam
para a Indonésia, mas o clima é muito úmido; os americanos querem aclimatá-lo no
Panamá, mas o clima é muito quente.
Xuxú? Só no Brasil ele medra. O sucesso do xuxú é pleno, absoluto, indiscutível,
inabalável, eterno.
A esta altura o Governo intervém. Depois de muitas reuniões das "altas
autoridades" e "próceres", decide-se nomear uma comissão para estudar o
caso do xuxú".
Para não alongarmos demasiadamente a epopéia do xuxú, vamos omitir as reuniões dessa
comissão que duraram 18 meses.
Passamos diretamente à "délivrance" que se consubstancia nas seguintes
luminosas deliberações, logo aprovadas "por quem de direito".
1. - Elaboração de um Código do Xuxú.;
2. - Criação do Instituto do Xuxú;
3. - Criação do Conselho Nacional dos Sub-produtos do Xuxú, Anexos e Derivados com a
sigla (é imprescindível uma sigla eufônica) C.N.S.X.A.D.
Nomeia-se para a comissão, encarregada de elaborar o Código do Xuxú, o Fulano, porque
gosta muito de lidar no jardim, revelando pendores para a agricultura, o Sicrano, porque
é amigo do João Daudt, e Beltrano que tem uma bonita caligrafia. A comissão do Código,
que não viu jamais um xuxusal, procura, na Biblioteca Nacional a bibliografia a respeito.
Reúnem tudo quanto se escreveu sobre o xuxú, somam, elevam à quinta potência,
acrescentam uns palpites do D.A.S.P., articulam, numeram os artigos e parágrafos e está
pronto o Código, verdadeira maravilha de 1.200 páginas couché, impresso na Imprensa
Nacional! Prevê tudo, desde a cor da gravata que deve usar o plantador de xuxú até o
formulário estatístico para o I.B.G.E.!
Depois vem o decreto que cria o Instituto do Xuxú e começa assim: -
"...decreta":
Art. 1. - Fica criado o Instituto do Xuxú, que será dirigido por um Presidente, 5
Vice-Presidentes, 4 Secretários-Gerais, 8 Conselheiros, 15 Diretores Assistentes e 1
Assessor Técnico.
Pargf.º 1º - O Presidente terá direito a um "pourboire" de Cr$30.000,00
mensais, automóvel (Packard ou Cadillac), diária, verba secreta, e será de livre
nomeação do Presidente da República (a essa altura já se sabe quem será nomeado).
Pargf.º 2º - O Presidente formará o seu "gabinete" que será composto de:
a- 01 Chefe de Gabinete
b- 05 Oficiais de Gabinete
c- 05 Secretários Particulares
d- 10 Secretários para cada oficial de gabinete
e- 40 Sub-secretários
f- 120 Contínuos
g- 300 Sub-Contínuos.
Pargf.º 3º - Dos cinco Vice-Presidentes, um será nomeado por indicação do Joãozinho
Daudt, outro por indicação do Lodi, outro por indicação do Simonsen, outro por
indicação da Confederação Nacional das Associações Xuxuseiras e, finalmente, o
quinto, que será representante dos consumidores de Xuxú, por livre escolha do
Presidente.
Pargf.º 4º - O Presidente terá direito ao tratamento de "S. Excia. o Sr. Ministro
Presidente do Instituto do Xuxú".
Pargf.º 5º - Os demais Diretores terão direito ao tratamento de Excelência e, quando
referidos na 3.a pessoa, serão incluídos no rol de "altas autoridades".
Pargf.º 6º - Nos banquetes terão assento imediatamente após o Ministro da Agricultura,
etc.
E seguem-se mais de 1.694 artigos regulando o pessoal, a hierarquia, as honras, os
vencimentos, o tamanho dos móveis, a padronização do material, etc., até o Capítulo
XXXVIII, onde se lê:
Cap. XXXVIII
FINALMENTE, DO XUXÚ
Art. 1.695 - Nenhum lavrador poderá plantar xuxú sem primeiro inscrever-se como
xuxucultor no Registro de Xuxucultores do Instituto do Xuxú, pagando a taxa módica de
Cr$10,00 pela inscrição.
Art. 1.696 - Os xuxucultores inscritos nos termos do art. 1695 terão direito a:
1.º - isenção de impostos federais, estaduais e municipais;
2.º - financiamento de Cr$ 30.000,00 por hectare plantado;
3.º - assistência técnica de xuxuólogos do Instituto;
4.º - transporte gratuito para toda a produção;
5.º - uma assinatura anual da revista do Instituto, intitulada "O Xuxú";
6.º - receber todas as publicações do D.I.P. e do D.A.S.P.;
7.º - uma entrada gratuita em cadeira de orquestra para o Teatro Recreio;
8.º - abatimento de 10% nas compras feitas n '"A Exposição" e no Dragão da
Rua Larga, em frente ao qual fica a Light.
Art. 1.697 - Para inscrição no Registro de Xuxucultores o candidato deverá requerer ao
Presidente, sobre selos de Cr$ 7,80 federal e Cr$ 0,75 de Educação e Saúde, com firma
reconhecida, juntando os seguintes documentos:
a - certidão de nascimento;
b - prova de quitação com o serviço militar;
c - atestado de residência;
d - carteira de saúde;
e - folha corrida da polícia;
f - carteira de identidade;
g - certidão de casamento do avô, do pai e própria, se for casado e mais a certidão de
óbito da mulher, se for viúvo; se for solteiro deverá o candidato apresentar prova de
seu estado civil;
h - se for estrangeiro, apresentar Segunda via da carteira modelo 19;
i - atestado de boa conduta, passado pelo Prefeito do Município e pelo Delegado do
Distrito da residência;
j - certidão negativa de impostos federais, estaduais e municipais;
k - prova de sindicalização;
l - títulos de propriedade do imóvel e certidão do respectivo registro;
m - atestados de vacina contra tifo exantemático, varíola, febre amarela, raiva,
mordedura de cobra, etc...
Aqui deixamos de parte o famoso Código do Xuxú, para acompanhar a sorte de um imprudente
candidato que resolveu ser xuxucultor com todos os sacramentos e vantagens da lei.
Suponhamos que ele seja um lavrador de um município de São Paulo, filho de italianos.
Ele se chama Pedro S. Torello e todo mundo o conhece pôr esse nome e com esse nome ele
comprou as terras que cultiva e com esse nome paga os impostos. Como não sabe ler nem
escrever corretamente, procura um despachante ou um advogado, para tratar dos papéis. A
primeira dificuldade está em que ele foi registrado pelos pais com o nome de Pietro, mas,
depois, principiou a usar, patrioticamente, o nome de Pedro. É preciso, portanto, em
primeiro lugar, fazer uma justificação em juízo, com três testemunhas, para provar que
Pietro é Pedro. Para isso ele necessita requerer, sobre selos, com firma reconhecida,
"arranjar" as testemunhas, pagar as custas de cartório, etc., Tudo isso demora
um mês e custa cerca de Cr$500,00.
Para obter o segundo documento, que é a prova de quitação com o serviço militar, ele
também precisa requerer à Circunscrição do Recrutamento, com firma reconhecida,
juntando certidão de cidade, retratos, etc. E isso também demora três ou quatro meses,
na melhor das hipóteses, mas ainda precisa a chamada para "jurar à bandeira".
O terceiro documento, atestado de residência, também só se obtêm mediante
requerimento, sobre estampilhas, com firma reconhecida e atestado de três comerciantes
passados sobre estampilhas, com firma reconhecida, etc. Depois vem a carteira de saúde,
que também é preciso requerer com requerimento selado, firma reconhecida, etc, etc.
E assim vai. A esta altura o candidato já gastou Cr$5.000,00 e já perdeu 60 dias de
trabalho, em peregrinações entre o escritório do despachante e os guichês de
protocolo. Já esperou, horas e horas, que o funcionário terminasse a discussão sobre
futebol, para informar "por onde andam os papéis"...
...Só então nossa heróica vítima percebe que não é negócio ser xuxucultor e desiste
do registro. Vende as terras, compra um sapato de três andares, um terno branco de albene
e vai ser intermediário de xuxú, porque é mais "folgado" e dá dinheiro
"pra xuxú".
Não existe Pedro, nem o Instituto do Xuxú, mas tudo isso rima muito bem com a forma como
se resolvem os problemas brasileiros.
Auricélio Penteado, paulista, dotado de forte veia satírica, trocou a
popularidade que certamente lhe daria o jornalismo por outras atividades mais práticas.
Foi fundador do IBOPE, no Brasil, iniciando em nosso meio as sondagens de opinião
pública, nos moldes do Instituto Gallup, dos Estados Unidos. Desligando-se do IBOPE,
dedicou-se à publicidade. Algumas de suas sátiras contra os excessos burocráticos e a
falsa tecnocracia brasileira tiveram grande repercussão, como a que apresentamos,
publicada originalmente na revista "Publicidade e Negócios". Embora
longa, para nossos padrões, é uma obra prima.
Extraído da "Antologia de Humorismo e Sátira", Editora Civilização
Brasileira - Rio de Janeiro, 1957, pág. 407. Textos selecionados por R. Magalhães Jr.
OBS: Foi mantida a grafia constante do texto original.
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