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O clone do avô Jacinto
Ana
Nobre de Gusmão
O avô Jacinto ergueu-se com esforço, deu duas voltas à mesa e caiu redondo no chão,
como se fulminado por uma arma invisível. Calculei que lhe tinha dado outra vez aquela
coisa esquisita que o pusera tão diferente de repente e a minha primeira reacção foi
aproveitar a situação para inspeccionar livremente o tesouro escondido debaixo da sua
cama. Preparei-me para sair sorrateiramente da casa de jantar e subir silenciosamente as
escadas quando um grito da minha mãe me paralisou Paizinho gritou ela a
tapar a boca com as mãos O que foi, paizinho?
Alertado pelo grito da minha mãe, o meu pai entrou a correr na casa de jantar,
ajoelhou-se e encostou o ouvido ao peito do meu avô O coração bate
anunciou Chama uma ambulância, Teresa, é capaz de ser outra trombose, e diz à
Rita que me traga um copo de água.
Pensei em lembrar-lhes que da outra vez que lhe dera aquilo o avô também ficara assim
como morto uns momentos, e quis dizer-lhes que ia acabar tudo em bem, mas calculei que
não me iam dar atenção nenhuma, ou que me mandariam calar, e achei melhor não dizer
nada.
Muito pálida, a minha mãe segurou-me por um braço e arrastou-me para o corredor
Vai para o teu quarto pediu num tom de voz sumido, irreconhecível.
Subi as escadas a correr, mas em vez de entrar no meu quarto continuei pé ante pé até
ao quarto do avô Jacinto e à cautela abri devagar a porta, apreensivo com a perspectiva
de poder sentir qualquer coisa estranha ou de ver qualquer coisa estranha o fantasma dele,
o outro ele, a sua alma, uma luz difusa e misteriosa a pairar no ar, uma voz sussurrante,
um gemido arrepiante, uma gargalhada sobrenatural, o cheiro indefinível da morte (como o
cheiro do gato do vizinho que apareceu morto na garagem).
Mas não vi nem senti nada de estranho, o sol iluminava o cadeirão de cabedal onde antes
daquilo acontecer ele se sentava sorumbático e inacessível a ler, a cortina ondulava ao
sabor da leve brisa que entrava pela janela entreaberta, no ar pairava o vago cheiro a
urina tudo era familiar, habitual e mais tranquilo entrei, levantei a franja da colcha e
espreitei para debaixo da cama.
Desde que aquilo acontecera pela primeira vez que eu tinha a secreta convicção de que o
avô Jacinto fora clonado por extraterrestres, mas que algo não correra como devia ou
seja, se o corpo era o mesmo, embora um pouco mais trôpego, a sua mente rebelara-se e
transformara-o num linguareiro mordaz e libidinoso, sempre a gabar-se das namoradas e das
amantes que tivera e a meter-se com a Rita (a empregada entretanto contratada pelos meus
pais para tomar conta dele), a chamá-la ao quarto por tudo e por nada, a ordenar-lhe que
se chegasse mais perto dele com uma desculpa qualquer para poder apalpá-la, a pedir-lhe
um beijo, ou a convidá-la para sair e outras coisas do género, graçolas brejeiras e
isso.
Ela ria-se, mas depois à socapa olhava para mim e levava o indicador à testa que era
como quem dizia que o coitado estava meio passado e não sei, se calhar até estava, mas a
mim não me parecia. Cá na minha ele sabia muito bem quem era e o que queria, só que
quem era e o que queria era agora diferente de quem fora e do que quisera antes de ser
clonado. Como se o engano dos extraterrestres lhe tivesse dado a hipótese de uma segunda
chance.
E eu, que nunca tivera uma existência significativa para ele, tornei-me uma das suas
companhias favoritas (aliás, a única, se exceptuarmos a Rita). Aliciava-me com
descrições pormenorizadas dos seus encontros amorosos, ensinava-me truques para me
tornar irresistível a qualquer mulher, dava-me lições de anatomia e de psicologia
feminina, explicava-me os sistemas contraceptivos, as doenças venéreas, os tipos de
beijo e as posições no coito, tudo desenhado e esquematizado num bloco que tinha sempre
ao alcance da mão.
Vê lá se não está uma pantufa minha debaixo da cama pediu-me um dia com
um ar cândido Não a consigo encontrar em lado nenhum.
Eu deitei-me no chão, levantei a franja da colcha e enfiei a cabeça debaixo da cama
Aqui só há revistas, avô.
E intrigado São de quê? Posso ver?
Ele riu-se Traz cá uma que eu mostro.
Tirei a que estava no topo da pilha, recuei de bruços até sentir que já não batia com
a cabeça na trave da cama e olhei aparvalhado para a fotografia de uma morena mamalhuda e
seminua estampada na capa da revista (e que ainda por cima parecia retribuir-me o olhar).
Então, rapaz, estás a olhar para quê, traz cá isso chamou ele
impaciente.
E riu-se outra vez.
Isto é um segredo que fica entre nós avisou a abanar a revista com um ar
ameaçador E só tens autorização de ver as páginas que eu te mostrar não te
quero para aí a folhear a teu bel-prazer e a topares com coisas que ainda não podes
entender ou que possas interpretar mal.
A partir daí passei a entrar-lhe no quarto todas as tardes com um só fito
Chamaste, avô?
Eu perguntava ele a simular surpresa Eu não, porque é que havia de
te chamar?
Pareceu-me dizia eu.
Não chamei repetia ele.
E fechava os olhos a fingir que dormitava.
Eu não arredava pé e o jogo prolongava-se até ter finalmente coragem para perguntar:
Posso ir buscar uma revista, avô?
Ele abria os olhos, sorria trocista e apontava para mim o dedo torto Também me
saíste cá um bom malandro, vá, vai lá buscar outra, mas já sabes, quem ta mostra sou
eu.
E eu mergulhava debaixo da cama e escolhia uma ao calhas porque já as tínhamos visto
todas pelo menos uma vez e, com as orelhas a arder e o coração a bater mais forte,
depositava-lha nas mãos como se de um tesouro se tratasse.
Ele pousava a revista no colo, tirava os óculos, limpava as lentes ao casaco de malha,
inspeccionava-as com um ar sério, voltava a empoleirar os óculos na ponta do nariz e só
então começava calmamente a folheá-la Como é que ela consegue pôr-se nesta
posição murmurava a abanar a cabeça - O raio da mulher deve ser contorcionista.
E eu, roído de curiosidade Deixa ver, avô Esta não dizia ele a
afastar a revista Demasiado explícita para a tua idade.
Atento e de respiração suspensa, estiquei o braço e tacteei o soalho debaixo da cama
quando ouvi a voz da minha mãe a meio das escadas Vou meter um pijama, meias,
roupa interior e a escova de dentes numa mala, nunca se sabe.
Levantei-me num sobressalto, corri para a porta e dei de caras com a palidez dela O
que é que estás aqui a fazer perguntou desconfiada.
Nada balbuciei a encolher os ombros O avô já acordou?
Ela olhou para mim e duas lágrimas rolaram-lhe pela face Não balbuciou
Por favor vai para o teu quarto, deixa-me aqui sozinha um minuto.
Com o aparato de nave espacial, a ambulância chegou pouco depois e da janela do quarto
vi-o sair numa maca, tapado até ao pescoço por um cobertor tão cinzento como a pele do
seu rosto.
Estupidamente acenei-lhe.
Vi o meu pai entrar na ambulância depois de olhar para cima e esboçar um sorriso
contristado ao qual não eu correspondi.
A minha mãe voltou a subir as escadas e ouvi-a fechar a porta do quarto do meu avô à
chave.
Depois entrou de mansinho no meu quarto e colocou as mãos nos meus ombros O teu
avô teve outra trombose começou numa voz embargada, mas a emoção obrigou-a a
calar-se a meio.
Não te preocupes, mãe pedi Os extraterrestres clonaram-no mal da
primeira vez e por isso têm de repetir.
Ela olhou para mim com os olhos vermelhos Os extraterrestres repetiu
surpreendida a afagar-me a face.
Dez dias depois outro clone do avô Jacinto voltou para casa ou melhor dito, metade de um
clone do avô voltou para casa porque a outra metade ficou para sempre em parte incerta,
um lado do corpo descaído e a mente envolta numa espécie de torpor do qual saía de vez
em quando para proferir numa voz arrastada e com inesperada vivacidade no olho mortiço
Rm rm rm a esticar o braço bom e a apontar na direcção da cama.
E eu ia buscar uma revista, colocava-a no colo dele, tirava-lhe os óculos, limpava-lhes
as lentes, voltava a colocar-lhos com cuidado e finalmente abria a revista e virava as
páginas, uma a uma, devagar.
Às vezes o seu dedo torto seguia o contorno de uma coxa, de umas mamas, de umas nádegas
Rm, rm, rm, rm proferia agitado, a tentar arrancar da mão da Rita o lenço
de papel onde ela enxugava o fio de saliva que lhe escorria do canto mole da boca.
Ana Nobre de Gusmão nasceu em Dezembro de 1952, em Lisboa. Estudou Filosofia na
Faculdade de Letras de Lisboa e Design no ARCO. Vive em Portugal e na Suiça. Colabora
regularmente nas revista "Elle Portugal" e na "Storm-Magazine". Sua
obra encontra-se traduzida na Alemanha. Livros publicados:
Delito sem corpo - Editora Presença, 1996 (Prêmio Máxima Revelação)
Não é o fim do mundo Editora Presença, 1996
Aves do paraíso Asa Editora, 1997
Onda de choque Asa Editora, 1999
Das tripas coração Asa Editora, 2000
Até que a vida nos separe Asa Editora, 2002
O pintor Asa Editora, 2004
O texto acima nos foi gentilmente cedido pela Storm-Magazine, edição de Março/2005. Foi
mantida a grafia original.
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