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Carta de Paris
Ana Cristina Cesar
I
Eu penso em você, minha filha. Aqui lágrimas fracas, dores mínimas,
chuvas outonais apenas esboçando a majestade de um choro de viúva,
águas mentirosas fecundando campos de melancolia,
tudo isso de repente iluminou minha memória quando cruzei a ponte
sobre o Sena. A velha Paris já terminou. As cidades mudam mas meu
coração está perdido, e é apenas em delírio que vejo
campos de batalha, museus abandonados, barricadas, avenida ocupada
por bandeiras, muros com a palavra, palavras de ordem desgarradas;
apenas em delírio vejo
Anaïs de capa negra bebendo como Henry no café, Jean à la garçonne
cruzando com Jean Paul nos Elysées, Gene dançando à meia luz com
Leslie fazendo de francesa, e Charles que flana e desespera e volta
para casa com frio da manhã e pensa na Força de trabalho que
desperta,
na fuga da gaiola, na sede no deserto, na dor que toma conta, lama
dura, pó, poeira, calor inesperado na cidade, garganta ressecada,
talvez bichos que falam, ou exilados com sede que num instante
esquecem que esqueceram e escapam do mito estranho e fatal da terra
amada, onde há tempestades, e olham de viés
o céu gelado, e passam sem reproches, ainda sem poderem dizer que
voltar é impreciso, desejo inacabado, ficar, deixar, cruzar a ponte
sobre o rio.
II
Paris muda! mas minha melancolia não se move. Beaubourg, Forum des
Halles, metrô profundo, ponte impossível sobre o rio, tudo vira
alegoria: minha paixão pesa como pedra.
Diante da catedral vazia a dor de sempre me alimenta. Penso no meu
Charles, com seus gestos loucos e nos profissionais do não retorno,
que desejam Paris sublime para sempre, sem trégua, e penso em você,
minha filha viúva para sempre, prostituta, travesti, bagagem do disk
jockey que te acorda no meio da manhã, e não paga adiantado, e
desperta teus sonhos de noiva protegida, e penso em você,
amante sedutora, mãe de todos nós perdidos em Paris, atravessando
pontes, espalhando o medo de voltar para as luzes trêmulas dos
trópicos, o fim dos sonhos deste exílio, as aves que aqui gorjeiam,
e penso enfim, do nevoeiro,
em alguém que perdeu o jogo para sempre, e para sempre procura as
tetas da Dor que amamenta a nossa fome e embala a orfandade
esquecida nesta ilha, neste parque
onde me perco e me exilo na memória; e penso em Paris que enfim me
rende, na bandeira branca desfraldada, navegantes esquecidos numa
balsa, cativos, vencidos, afogados... e em outros mais ainda!
Ana Cristina Cesar, ou Ana C., como era conhecida, nasceu em 1952
nesta cidade do Rio de Janeiro. Após 1968, passou um ano em Londres, fez algumas viagens
pelos arredores e, na volta, deu aulas, traduziu, fez letras, escreveu para revistas e
jornais alternativos, e saiu na antologia "26 Poetas Hoje", de Heloísa
Buarque. Publicou, pela Funarte, pesquisa sobre literatura e cinema, fez mestrado em
comunicação, lançou seus primeiros livros em edições independentes: "Cenas
de Abril" e "Correspondência Completa". Dez anos depois voltou
à Inglaterra, graduou-se em tradução literária, escreveu muitas cartas e editou "Luvas
de Pelica". Trabalhou em jornalismo, televisão e escreveu "A Teus Pés",
Editora Ática - São Paulo, 1998. Suicidou-se no dia 29 de outubro de 1983.
Ítalo Moriconi escreveu: "Ana Cristina dizia que uma das facetas do seu desbunde fora abandonar a
idéia de ser escritora, livrar-se do que ela naquele momento julgava ser sua face
herdada, o estigma princesa bem-comportada, alguém marcada para escrever".
Texto extraído do livro “Inéditos e dispersos”, Editora Ática – São
Paulo –
1985 – pág. 283.
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