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Quando eu chegar ao Céu...
Antonio Carlos Villaça
Quando eu chegar ao Céu, de manhã, de tarde ou de noite, não sei ainda, pedirei para ir
à biblioteca de Deus, onde curiosamente bisbilhotarei com respeito algumas
obras. Quero reler a Invenção de Orfeu, de nosso Jorge de Lima, sofredor, telúrico e
místico, homem bom, cirenaico, assim lhe chamou Rachel de Queiróz, quando ele morreu,
novembro, 15, do ano de 1953.
E pedirei, sim, para conversar com Manu, Manuel Bandeira, que se chamava Neném. Matarei
saudades do dentuço Manuel, que foi o melhor ser humano que conheci, neste mundo. E
gostaria de conhecer Chiquita do Rio Negro, que recusou casar se com Ataulfo Nápoles de
Paiva, conviva do baile da ilha Fiscal. Escrevi sobre Chiquita. Li a sua biografia,
escrita por Garrigou-Lagrange.
Meu Deus, convocaria Jaime Ovalle, o tio Nhonhô, que morreu com a idade de Jorge de Lima.
Ali, na biblioteca do Céu, conheceria o estupendo Ovalle, o do Azulão, o bêbedo
místico, o amigo de Manuel, íntimo de Londres e de Nova York.
Por fim, suplicaria para falar com João Guimarães Rosa, poliglota, com quem tão poucas
vezes falei. E evocaria a posse do seu sucessor, na Casa de Machado. Esqueci-me
completamente dessa posse, ai de mim.
E fui. Lá estava eu, 1968. Um ano depois da morte de Rosa. Mário Palmério falou sobre
ele, como seu herdeiro. E gostei tanto do discurso, equilibrado, lúcido, original. Se me
lembro. Foi procurar cartas íntimas de Rosa para grande amigo, médico e fazendeiro em
Minas, Moreira Barbosa. Cartas de outrora. Deliciosas, fraternais, confiantes, de pura
entrega. Reveladoras do ser complexíssimo, fechado, carente, que gostava de disfarçar,
despistar, ir e vir, comensal do mistério. Saudarei a uns e outros na largueza dadivosa
do Céu, turbilhão de amor, como dizia o insaciável Léon Bloy.
Antonio Carlos Villaça nasceu na cidade do Rio de Janeiro (RJ), aos 31 de agosto
de 1928. Jornalista, conferencista e tradutor, é reconhecido como um dos mais importantes
memorialistas do Brasil. É autor de mais de 20 livros, dentre os quais destacamos
Perfil de um estadista da República (edição do autor, 1945), pequena
biografia do Barão do Rio Branco, organizou, em 1962, um livro sobre o poeta romântico
Junqueira Freire para a coleção Nossos Clássicos (Agir), como memorialista
estreou com O nariz do morto (JCM, 1970; Rocco, 1975; Ediouro, 1990 e 1996),
ao qual se seguiram O anel seu livro preferido (Editora Rio,
1972), O livro de Antonio (José Olympio, 1974), Monsenhor
(Brasília/Rio, 1975), Degustação, memórias, (José Olympio, 1994),
Os saltimbancos da Porciúncula (Record, 1996), A descoberta do
morro (Vigília, 1984), Manuel Bandeira (Agir, 1984), O desafio da
liberdade (Agir, 1983), Alceu Amoroso Lima (Agir, 1984).
Com o conhecimento adquirido em sua frustrada vida religiosa que, segundo alguns
críticos, é a espinha dorsal de sua obra vide Villaça: Um noviço na
solidão do mosteiro produziu ensaios fundamentais, dos quais destacamos
História da questão religiosa (Francisco Alves, 1974), O pensamento
católico no Brasil (Jorge Zahar, 1975), Tema e voltas (Hachette, 1976),
Literatura e vida (Nova Fronteira, 1976), Místicos, filósofos e
poetas (Imago, 1976).
Muitos escreveram sobre sua obra e sua posição importantíssima na literatura brasileira
deste século: os poetas Cassiano Ricardo e Carlos Drummond de Andrade, o crítico Wilson
Martins, o romancista Octávio de Faria. Conviveu com Alceu Amoroso Lima, Gilberto Amado,
Augusto Frederico Schmidt, Gilberto Freyre, Manuel Bandeira, Pedro Nava. Na livraria José
Olympio, conversava todas as tardes com Graciliano Ramos.
Em Memórias de um eterno menino ao sol, resenha do livro Os
saltimbancos da Porciúncula, de autoria de Isabel Lustosa, diz ela:
Villaça é o flaneur, é o homem das multidões, testemunha discreta
e atenta, ávida de ver, de compreender, de entrar em contato. Seu olhar contemplativo
percorre com calma e volúpia a paisagem e os homens em volta. Retira deles o que apenas a
sua sensibilidade, o seu paladar, enfim, os seus sete sentidos apuradíssimos são capazes
de apreender. Transforma tudo em palavras. Porque para ele, no principio não é a ação,
é o verbo. Villaça defende a primazia da palavra sobre a ação. E as palavras brotam
dele com uma naturalidade prazerosa, parecendo nascer assim ao correr da pena, revelando
as coisas conforme elas vão se apresentando à memória do que escreve. E, com elas, as
sensações que evocam, renovadas, vívidas, palpitantes, como se o narrador estivesse a
vivê-las naquele momento, a experimentar de novo a volúpia do sol sobre a pele no
quintal da sua infância.
Antonio Carlos Villaça foi agraciado, em 2003, com o Prêmio Machado de
Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra.
O autor faleceu no dia 29 de maio de 2005.
Texto extraído do livro Os saltimbancos da Porciúncula, Editora Record
Rio de Janeiro, 1996, pág. 73.
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